Genocídio à brasileira

“Não sou coveiro, tá?!”

Lucas Kalil
Revista Brado
5 min readOct 28, 2021

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Foto: Reprodução/UOL (19/03/2020)

“CF/88, art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Na última quarta-feira (27), o Senado Federal aprovou o relatório apresentado pelo senador e relator da CPI da pandemia Renan Calheiros (MDB-AL), que constam as ações e omissões do governo federal durante a pandemia que já vitimou mais de 600 mil brasileiros. Os procedimentos inquiridores e investigativos que circunscreveram os trabalhos dos senadores na Comissão Parlamentar de Inquérito produziram provas e constituíram o relatório, que acusa agentes do governo federal por crimes comuns e de responsabilidade.

Dos crimes listados no relatório, o presidente da República Jair Messias Bolsonaro (sem partido) foi acusado de pelo menos nove: prevaricação, crime de responsabilidade, crime contra a humanidade, charlatanismo, emprego irregular de verbas públicas, falsificação de documento particular, infração de medida sanitária preventiva e epidemia com resultado em morte.

Embora com muita frequência se atribua a denominação de “genocida” ao presidente, o tipo penal não se encontra no relatório final da CPI. Afinal de contas, seria Bolsonaro um genocida?

No Brasil, o crime de genocídio encontra tipificação na Lei n.º 2.889/1956, que o define como as ações intencionais de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Essas condutas estão expressamente taxadas nas alíneas do art. 1° da referida lei, tais como:

“a) matar membros do grupo;

b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;

d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;

e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo”.

Vamos por partes. Atitude intencional pressupõe dolo, que é caracterizado pelo art. 18, inciso I, do Código Penal brasileiro como sendo a hipótese na qual o agente quis o resultado ou, pelo menos, assumiu o risco de produzi-lo. Quanto a isso, todos testemunharam, ao longo de 2020 e 2021, as diversas declarações públicas do presidente da República nas quais havia, deliberadamente, menosprezo do altamente contagioso e mortal vírus causador da Covid-19, bem como as mortes causadas por ela. Essas manifestações de menosprezo, além de repugnantes no sentido ético da palavra, foram — como demonstra o relatório da CPI — fatais, pois as atitudes de quem ocupa o cargo mais alto da estrutura administrativa do Estado brasileiro têm peso de influência muito grande sobre parte do povo.

Quanto a isso, em junho de 2021, o estudo divulgado pelo Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) sobre as mortes evitáveis pela Covid-19 no Brasil indica que aproximadamente 305 mil pessoas poderiam ter tido suas vidas poupadas, caso a postura da gestão do país durante a pandemia tivesse sido mais séria e comprometida com o povo.

Buscando sermos otimistas e imaginando que o presidente da República não quisesse a “morte de parte considerável da população brasileira”, convenhamos que ainda assim ele assumiu o risco pela morte de milhares de brasileiros, ao destilar seu desprezo pela vida e pela catástrofe sanitária, e sabendo do impacto de suas palavras. No entanto, tecnicamente seria muito difícil uma condenação de Bolsonaro em relação ao crime de genocídio, já que, apesar das manifestações supracitadas, as mortes causadas pela pandemia — facilitadas e aumentadas pelas atitudes presidenciais — até onde se sabe, carecem de cunho ideológico, característica essencial para configuração do crime de genocídio, como subentende o próprio artigo 1° da Lei n.º 2.889/1956.

Assim, o termo “genocida” para designar o presidente é completamente válido e coerente no sentido político da palavra, tendo em vista suas características antiéticas desonrosas para com a vida alheia — conhecidas antes mesmo de se tornar presidente —, mas, dentro do significado jurídico, ele não se sustenta.

Por outro lado, o que mais se aproxima da narrativa do genocídio é a tipificação por crime de epidemia, listado no art. 267 do Código Penal brasileiro e, inclusive, um dos crimes pelos quais o Jair Bolsonaro foi indiciado no relatório da CPI. O crime consiste na propagação dolosa ou culposa de germes patogênicos e, como explica o criminalista Cezar Roberto Bitencourt, a sua natureza é de perigo concreto, não de dano, que pode ocorrer, mas não é imprescindível para a caracterização do ilícito. Assim, resta tipificada a conduta ainda que, concretamente, não resulte nenhuma pessoa contaminada.

Além disso, o resultado morte não é necessário para a caracterização do crime, mas é causa de aumento de pena do crime, como indica o §1° do aludido artigo.

Em meio à pandemia, presidente Jair Bolsonaro se reúne sem máscara com líderes do Congresso Nacional (2020). Foto: Marcos Corrêa/Fotos Públicas

As investigações da CPI da Pandemia evidenciaram que o governo federal, na figura do presidente da República, do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e do ministro da Defesa Walter Braga Netto — além de uma série outros atores dentro da estrutura governista — pretendeu a via da contaminação em massa da sociedade brasileira. Isso se justificou por meio da falsa lógica de que mais pessoas contaminadas com o vírus seria igual a mais pessoas imunizadas, o que por sua vez geraria mais rápido retorno da economia.

A estratégia da contaminação em massa — a chamada “imunização de rebanho” — foi escolhida, apesar das diversas mortes já testemunhadas em outros países, como na Itália, além das mais contundentes provas científicas de que se tratava de vírus novo, submetido a mutação natural e, portanto, imunização segura só adviria com vacina. Isso demonstra o incentivo à propagação intencional do vírus que até então todos conheciam por ser altamente contagioso e mortal. Assim, a estratégia institucionalizada de propagação de fake news e de declarações repugnantes da Presidência com a finalidade de contágio de boa parte da população brasileira foi essencial para termos os lamentáveis resultados da tragédia sanitária que vivemos.

Fora das questões jurídicas, e havendo ou não condenação do atual presidente da República, devemos ter a consciência de seu caráter desprezível e de sua péssima gestão no tocante à pandemia no Brasil, que gerou a morte de mais de 600 mil pessoas e o colapso no sistema de saúde do Amazonas. Que nunca nos esqueçamos da máquina mortal que foi o Estado brasileiro durante a pandemia e que assim não permitamos que a história anistie os verdadeiros inimigos da nação. Um dos deveres do Estado é, como se expôs no início deste texto, zelar pela saúde coletiva, diferentemente do que temos vivenciado. Às vítimas do governo Bolsonaro e suas famílias, o meu pesar

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Lucas Kalil
Revista Brado

Estudante de Direito e de Filosofia, colunista de Justiça da Revista Brado, além de eterno admirador e crítico da vida