Heróis ou ditadores? Caminhos da relação entre civis e militares

O Brasil tem um problema sério com seus militares. Solucioná-lo implica tanto compreender seus limites sobre a vida civil quanto saber de sua importância para a sociedade e o Estado

João Pedro Sabino Frizzera
Revista Brado
9 min readJul 19, 2021

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Então presidente Lula à frente da cerimônia de declaração de aspirantes a oficial do Exército na Academia Militar das Agulhas Negras. Lula teve uma relação de distanciamento com os militares durante sua presidência, em parte por conta de seu passado político durante a Ditadura Militar. Apesar disso, nunca foi uma relação de hostilidade. Foto: Wilton Júnior / Agência Estado

6 de janeiro de 2021, Washinton D.C. Estamos nos dias finais da presidência de Donald Trump nos Estados Unidos, em meio a um clima de tensão e divisão em todo o país após as eleições do ano anterior, que deram vitória ao democrata Joseph Biden, terem sido fortemente contestadas por Trump e vários membros do Partido Republicano. Enquanto as denúncias de fraude eleitoral vão amontoando pilhas de derrotas na justiça, o processo de transição dos presidentes seguia em frente, cabendo ao Congresso e ao vice-presidente reunir-se neste dia para os trâmites finais. Então, o impensável ocorreu: o momento do Reichstag americano.

Enquanto os representantes eleitos do Congresso se reuniam dentro do edifício do Capitólio, a sede do Legislativo Federal americano, do lado de fora uma multidão enfurecida iniciava um sítio contra o local. Naquela tarde de inverno, centenas de pessoas invadiram o Capitólio para impedir que a transição para o governo Biden fosse efetivada pelo Congresso, e então manter Trump no poder. Sabendo do que estava acontecendo, os congressistas são evacuados por meio de câmaras de emergência e então a multidão passa a pilhar as salas e escritórios de todo o edifício.

Quem poderíamos apontar como o responsável por isso tudo? Como nos descreve Mark Milley, um General do Exército dos EUA, no livro a ser lançado I Alone Can Fix It, Donald Trump abraçou definitivamente a insurreição, atiçou e incentivou a ação extrema de seus apoiadores e posteriormente culpou os Democratas pela violência. O resultado foi todo o descrito e o início de uma crise sem precedentes na democracia norte-americana, jogando as instituições ao seu limite e o país inteiro na incerteza pelos próximos dias.

Milley, como um membro do Alto Comando das Forças Armadas (FA) dos EUA, tinha grande proximidade com o presidente, mas nem por isso deixou de traçar estratégias de reação caso Trump tentasse um golpe. Mesmo que sua posição estivesse abaixo do presidente, que é o Chefe Supremo das FA, seu dever é a defesa das instituições e não dos interesses do presidente, ou seja, não é de sua posição realizar ações ilegais mesmo que ordenadas por seu superior. “Eles podem tentar, mas não vão conseguir”, disse Milley a seus auxiliares sobre a tentativa de golpe.

Somente em dois momentos da história o Capitólio foi sitiado: a primeira vez em 1814, quando foi queimado por forças britânicas após a desastrosa invasão americana ao Canadá, e a segunda no início deste ano, por apoiadores radicais do ex-presidente Trump. Pintura de Paul de Thoyras e fotografia por Alex Edelman/AFP/Getty Images

Muito distante de ser um problema meramente americano, as pretensões de Trump, a invasão de 6 de janeiro e o relato de Milley nos ensinam sobre como as instituições democráticas em uma república podem exibir fragilidades e resiliências frente a ameaças vindas de dentro de si mesmas. Nesse caso particular, um elemento me faz pensar: se os militares americanos, que historicamente se mantiveram à margem do processo político, não demostraram intenções de permitir uma ruptura democrática por parte de Trump, o mesmo pode ser dito caso isso tivesse acontecido no Brasil? Para obter uma resposta, vamos ter que olhar com mais detalhes para nosso país.

Os últimos anos no Brasil foram, sem sobra de dúvidas, bastante agitados na política. Diversos acontecimentos nacionais, como as Jornadas de Junho de 2013, as eleições de 2014 e 2018 e o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, levaram o país para uma autêntica crise política até agora sem solução. Percebeu-se nesse cenário que alguns setores da sociedade, além dos tradicionais partidos políticos e grupos sociais, passaram a se envolver mais ativamente na política nacional, sendo um deles os militares.

Há 10 anos, qualquer um que descrevesse a política brasileira dificilmente mencionaria os militares como sendo um grupo de importância significativa para o andamento da política no país. Agora, qualquer análise de curto ou longo prazo sobre o Brasil precisa obrigatoriamente incluir a classe como um componente do jogo político, tamanho é o seu peso.

Desde 2018 o número de militares no governo cresce e já atinge 6.000 membros. Foto: ED ALVES/CB/D.A. PRESS

As razões para isso são principalmente derivadas do fato de que o atual governo, cujo presidente é um ex-capitão expulso do Exército, possui um número expressivo de militares da reserva e da ativa nas mais diversas áreas do Estado, desde o próprio Ministério da Defesa, passando pela Infraestrutura e a Casa Civil, o que os tornam não só mais ativos na política, mas também conscientes no encaminhamento das questões do Estado, normalmente exercida por civis.

É exatamente isso, no entanto, que faz as coisas ficarem preocupantes. Tamanha é a presença dos militares como componentes do governo, o que ainda é uma situação inédita para a 6° República, que muito se desconfia se eles poderão participar de uma futura ruptura institucional liderada pelo presidente caso ele perca as eleições presidenciais do próximo ano, similar ao que Trump tentou em janeiro. Para piorar o clima de incerteza, no dia 7 de julho as três Forças Armadas mais o comandante da Aeronáutica em outra ocasião — todos eles postos nesses cargos após os anteriores renunciarem por conta de pressões do Planalto em 30 de maio — fizeram declarações que podem ser interpretadas como ameaças ao Congresso, por conta das investigações da CPI da Covid. A clara tentativa de interferir no processo das investigações revive o temor de que ao menos alguns setores das três forças estariam dispostos a se insurgir contra as instituições.

Tendo em vista esse contexto de incerteza sobre o futuro do país, retornamos ao problema inicial: o que os militares farão caso Bolsonaro tente um golpe a la Trump? Infelizmente, não há como ter certeza. Ao colocar tantos deles no governo, o presidente empurra a caserna a apoiá-lo em uma aventura golpista e busca convencê-los de que um governo que não seja o seu não irá oferecer proteção a punições futuras — como demonstrado pela reação das três forças no caso da CPI. Assim, para se protegerem da “perseguição” dos civis, os militares teriam que apoiar um golpe.

Essa tese, por mais que tenha um fundo de verdade, não considera que a forma com a qual os militares serão encarados pelos civis e seu governo, na verdade, deve se basear justamente na forma com que eles se portarão na hora decisiva: se eles apoiarem a legalidade e afastarem uma tomada violenta de poder, haverá maior confiança do sistema político de que os mesmos são capazes de cumprirem seu dever institucional — a defesa da Pátria e a garantia dos poderes constitucionais, não dos interesses imediatos do presidente — mesmo que sejam necessárias algumas reformas.

Dito isso, devemos lembrar que independentemente do que Bolsonaro esteja planejando para o futuro e qualquer que seja a visão dos militares sobre isso, nem ele nem qualquer um que o suceda permanecerá por muito tempo no poder — não sem forte oposição, pelo menos. As recentes pesquisas de opinião e de intenções de voto, as investigações sobre sua péssima gestão na pandemia, os protestos populares e os crescentes indícios de corrupção no governo acabam por expor extremas fragilidades no projeto de manutenção do poder de Bolsonaro, deixando claro que as chances de que ele consiga se reeleger para um novo mandato são na realidade menores do que se poderia pensar.

O real problema que irá permanecer, no entanto, é a forma que a sociedade civil irá tratar os militares que restarão. Ou seja, a questão militar será a forma que nós vamos lidar com o fato de que muitos membros do corpo de oficiais foram colaboradores de um governante que buscou cercear o funcionamento das instituições. É compreensível — escrevendo da perspectiva de um civil — defender duras punições sobre essa classe, especialmente em casos de clara quebra de protocolo, no caso do ex-ministro Pazuello, mas antes disso é preciso lembrar que as coisas no Brasil são sempre mais complicadas.

Acontece que para muitos autores que analisam a interação entre civis e militares na história do Brasil, há uma separação entre a sociedade civil e a “sociedade militar”. A possível origem dessa divisão é incerta, mas a sua continuidade nos tempos atuais se deve a um erro terrível ocorrido durante a transição da ditadura militar para a atual república: os militares, ao organizarem a transição gradual para a democracia nos anos 1980, a fizeram de modo a apaziguar sua relação com as elites políticas e evitar grandes represálias. Isso significa que essas elites puderam retomar o controle das instituições do Estado na medida que o governo civil não reagisse enfaticamente contra as bases que ergueram o regime militar, ou sequer buscassem justiça contra os infratores. Houve, dessa maneira, um verdadeiro retorno dos milicos à caserna sem haver prestação de contas quanto aos 21 anos de autoritarismo.

Em uma entrevista em 1993, o ex-presidente da ditadura Ernesto Geisel — que foi um dos articuladores do retorno à democracia e opositor do pensamento linha-dura — chamou Bolsonaro de um mau militar por pedir o retorno da ditadura. Imagem: Brasil Limpeza

Essa péssima escolha permitiu não somente a impunidade de muitos dos mais violentos agentes do regime — poucos dos quais viriam a ser levados à justiça somente décadas depois — mas também que a mentalidade linha-dura pudesse sobreviver nos meios militares e até no meio político. Jair Bolsonaro é, justamente, uma consequência desse erro, pois ele foi um dos que manteve viva a ideologia mais autoritária do regime sem que o sistema político ou as instituições tivessem resiliência para reagir à sua postura ou sequer frear sua ascensão ao poder.

Dito isso, se a impunidade se mostrou tóxica para a política no longo prazo, extirpar do Estado a função exercida pelos militares pode ser contraproducente, pois pode justamente gerar reações violentas e incentivar o revanchismo, além de não atacar o real problema, que é justamente a dissociação das esferas civil e militar. Portanto, tentar demonizar as Forças Armadas e sugerir sua desmobilização ou “desfinanciamento” , como algumas vozes sugeriram nos últimos dias, irá somente aprofundar as fricções que já existem.

Mais do que isso, na verdade, essa sugestão parece não ter compreensão do fato de que o Estado precisa das forças armadas. Saber disso não se trata de meramente tentar defender as FA que precisam sim passar por reformas, mas de saber que privar o Estado — que sustenta sua existência necessariamente através do monopólio da legitimidade da violência — de possuir meios de defesa é algo fora da realidade. Uma realização neste nível seria o maior ato possível de submissão aos interesses estrangeiros, pois impediria qualquer possibilidade do Brasil de cumprir seu interesse caso um outro país não o deseje. No fim das contas, mais do que a defesa das instituições e do Estado, as FA servem como um instrumento de dissuasão e projeção do poder, permitindo que o Estado busque o que é melhor para si sem depender do “sim” de outros países.

A falta de compreensão da realidade vivida, aliás, nos permite concluir um pouco sobre a forma com que o assunto de Defesa é tratado no Brasil. Qualquer coisa que tange as instituições de um Estado deve ser tratada como assunto público, portanto é necessário que se discuta com maturidade as questões relativas à Defesa e à Segurança Nacional. Por isso, é necessário também que mais pessoas, especialmente na esquerda, aprendam que debater isso não é coisa de fascista ou “filhote da ditadura”.

Recusar-se a ver a realidade e sequer ver essa discussão como algo válido, na verdade, permite que somente os ideais da direita conservadora — e até radical — floresçam nesse meio. A pluralidade de ideias, pelo contrário, possibilita a evolução e a elaboração de uma estratégia de defesa mais bem centrada nas necessidades e prioridades da sociedade brasileira, pois os interesses que a norteiam não serão centrados somente nos interesses de um grupo menor e crescentemente radical. Tudo isso representa um esforço de interação positiva entre as esferas civil e militar em busca da sincronia de seus interesses e necessidades.

O que realmente precisa ser feito para iniciar mudanças é uma verdadeira discussão pública na relação entre os militares e civis no Brasil. É claro, isso não é nada fácil, pois para muitas pessoas é um assunto delicado, mas fazer isso visa conciliar o público com os quartéis, o que será fundamental não somente para a segurança da sociedade civil, mas também para que o Brasil possa construir mais adiante uma democracia mais capacitada a resistir a investidas autoritárias como as que vivemos hoje.

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João Pedro Sabino Frizzera
Revista Brado

Estudante de Relações Internacionais pela Universidade Vila Velha | Colunista de Política da Revista Brado.