Hong Kong, uma região sem identidade

Gustavo Dantas
Revista Brado
Published in
8 min readMay 30, 2023
Autoridades Chinesas fiscalizando a destruição do ópio britânico importado da Índia. Imagem: Reprodução

Ao longo do ano de 2019, os olhos de parte do mundo se voltaram para a imposição chinesa sobre o território de Hong Kong e a tensão crescente de um possível conflito armado, mas com a pandemia e a sobreposição de outros conflitos, o tema foi gradativamente abandonado pelos veículos de comunicação tradicionais. Contudo, o clima na região não esfriou nesse período. Mas para falar dos conflitos atuais é preciso voltar um pouco (ou nem tão pouco) no tempo.

A história de Hong Kong é marcada por muita repressão e preconceito. Inicialmente uma vila pesqueira pouco povoada, a região passou por períodos de abandono e foi alvo de piratas antes da chegada dos britânicos, no contexto do neocolonialismo do século XIX. Nesse período, o comércio ilegal de ópio desencadeou duas guerras entre os britânicos e a China, conhecidas como Primeira e Segunda Guerras do Ópio.

A primeira fase desse conflito começou em 1840 e durou até 1842, com a assinatura do Tratado de Nanking, que envolvia, entre outros termos, a concessão de Hong Kong à Grã-Bretanha por tempo inicialmente indeterminado. A China, que na época não tinha a força econômica de hoje, viu como alternativa mais viável para o conflito contra os ingleses, que eram a maior nação marítima do planeta, a concessão de diversas regiões para melhorar o comércio britânico.

O controle dos europeus sobre Hong Kong continuou até meados da década de 1930, quando começou a Segunda Guerra Sino-Japonesa. Durante a Segunda Guerra Mundial, o Japão fascista invadiu a região, que permaneceu sob ocupação por cerca de quatro anos. A dominação japonesa trouxe mudanças drásticas na vida da população local, incluindo alterações na moeda, no sistema de ensino e na regulação geral. O fim do domínio japonês ocorreu em 1945, com a rendição das forças aliadas e a devolução de Hong Kong à Grã-Bretanha.

Cartaz da Revolução Chinesa. Tradução: Unir e lutar por uma vitória maior

Após a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria trouxe novos desafios para Hong Kong. O Partido Comunista Chinês (PCC) se fortaleceu no continente, mas decidiu adotar uma política de coexistência pacífica com Hong Kong devido à relação do Reino Unido com os Estados Unidos. Todavia, desde a Revolução Chinesa em 1949, a China passou por um processo de reestruturação nos âmbitos internacional e doméstico. Mao Tsé-Tung assumiu uma governança autoritária, focada no crescimento da China como nação e na restauração do sentimento de pertencimento ao país, perdido em parte devido ao colonialismo na região.

Em 1997, após negociações entre o Reino Unido e a China, Hong Kong retorna para o domínio chinês, o que leva a um crescimento do desejo de independência na região. O fato de já ter sido controlada por três países extremamente diferentes ideologicamente trouxe um tempo de completo caos na região.

Em resumo, desde a Revolução Chinesa, a China passou por um processo de reestruturação liderado por líderes autoritários do PCC. A busca pela soberania e identificação nacional, combinada com o medo de humilhação e o colapso da União Soviética, moldou as políticas do partido-estado. A repressão violenta contra manifestações populares, como o mMassacre da Paz Celestial, reafirmou a natureza ditatorial do regime. A restauração da autoimagem histórica e a proteção dos territórios nacionais são preocupações centrais para o PCC. No entanto, a resistência em Hong Kong e a possibilidade de outras regiões buscando independência representam desafios significativos para a estabilidade do governo chinês.

Sentimento dos cidadãos de Hong Kong

Vista do Nan Lian Garden. Foto: Gustavo Calil

Toda essa questão de conquista de Hong Kong por países diferentes gerou um sentimento único nos honcongueses. Eles não se viam nem como chineses nem como Ingleses, e com razão, já que ambos os lados usaram desse território somente para dominação e acúmulo de capital, e sempre adotaram uma postura de violência com os habitantes. A relação Inglaterra e cidadãos de Hon Kong é bem parecida com o imperialismo português sobre o Brasil: além da Coroa, ninguém mais tinha direitos e a burguesia só via os cidadãos como “escravos”.

O processo de construção identitária em Hong Kong é baseado em características como história compartilhada, cultura distinta, senso de vizinhança e forte apelo emocional. Embora a cultura chinesa tenha influência na história de Hong Kong, o conflito entre as identidades honconguesa e chinesa aumentou após as Olimpíadas de Pequim em 2008. A partir dali a população de Hong Kong começou a se manifestar como um povo distinto do povo chinês. Esse processo de identificação é observado em diferentes regiões do mundo, como partes do Nordeste e do Sul do Brasil, os escoceses e os catalães, que compartilham forças motrizes semelhantes na reivindicação de sua nacionalidade e identidade.

A identidade nacional de Hong Kong tem duas formas de serem descritas: uma baseada na ancestralidade étnica comum e outra que considera a nacionalidade como um conceito flexível. Embora os habitantes de Hong Kong sejam etnicamente chineses, eles enfatizam sua identidade para se distanciarem dos habitantes do continente. Essas identidades são construídas em relação ao “Outro” e destacam diferenças linguísticas, símbolos culturais, tradições e memórias coletivas.

Em resumo, a identidade de Hong Kong é moldada por fatores como história compartilhada, cultura diferenciada e memórias históricas. Os habitantes de Hong Kong escolheram se identificar de forma distinta, formando uma identidade honconguesa única. Essa identidade é mais do que uma entidade política: é um sistema de representação cultural no qual as pessoas participam, conforme representado em sua cultura nacional.

As formas de dominação chinesa

A volta do domínio chinês à ilha de Hong Kong em 1997 resultou na implementação de uma educação fortemente baseada nas questões culturais chinesas, com o objetivo de fortalecer o ensino da China às gerações mais jovens. Essa abordagem educacional foi influenciada pelo desequilíbrio de poder entre o continente e a ilha de Hong Kong, em que a soberania chinesa se sobrepunha ao desenvolvimento político local. Além disso, uma tendência de “sinicização” ou “nacionalização” também se manifestou nas políticas educacionais impostas na agenda política local.

No entanto, esse patriotismo imposto acabou se tornando uma forma de dividir a comunidade e atacar os democratas, rotulando-os como antipatrióticos. A consciência nacional foi usada como uma arma pelos cidadãos contra seus próprios compatriotas. Essas questões educacionais já haviam sido discutidas no início do século XX, quando os europeus buscavam estabelecer escolas diferentes para europeus e chineses em Hong Kong.

No entanto, as imposições de Pequim não foram aceitas de forma natural. Ações como a implementação da “Lei de Segurança Nacional” foram contrárias aos desejos da população de Hong Kong, levando muitos jovens a se engajarem em ativismo político entre 2003 e 2004, crescendo ainda mais esse estímulo nos dias de hoje. A estratégia de Pequim para doutrinar os cidadãos de Hong Kong incluiu a ênfase nos descendentes chineses como forma de despertar um sentimento nacionalista e a homogeneização da identidade chinesa, buscando anular as diferenças em uma sociedade profundamente dividida — diferenças claras, visto a precarização total do continente com a região.

No entanto, essas estratégias de homogeneização e assimilação podem levar à exclusão de certas vozes e diferenças de gênero, classe e etnia. Ao fixar-se em uma identidade nacional única, as diferenças e a complexidade das identidades individuais são obscurecidas, especialmente em um mundo cada vez mais globalizado.

Assim, a política de Pequim busca reunir todos os elementos culturais e sociais de Hong Kong, nivelando as diferenças e apresentando-se como uma única nação, muitas vezes ignorando as diferenças das minorias étnicas presentes na região. A história de Hong Kong foi transformada em uma história local, subordinada a uma história nacional maior e mais importante.

Hong Kong hoje

O atual momento de Hong Kong é bastante voltado para o conflito e proteção de seus direitos. Os protestos visam obter o reconhecimento da identidade honconguesa como um direito para participar da política, do desenvolvimento social e econômico da região. Os motivos subjacentes à insatisfação dos honcongueses em relação aos mainlanders (China continental) foram acumulados ao longo dos anos como colônia, buscando direitos políticos e resistindo ao Partido Comunista Chinês.

Os legítimos protestos de hoje visam obter o reconhecimento da identidade honconguesa como um direito para participar da política e do desenvolvimento social e econômico da região.

O reflexo da inserção ativa de jovens em Hong Kong na política é sentido pelo mundo pós-2014. Os protestos cresceram ao longo do tempo, com destaque para a “Revolta dos Guarda-Chuvas”. O movimento Scholarism, criado em 2011, e o Occupy Central With Love and Peace, formado em 2013, também desempenharam papéis importantes na luta por democracia e participação política. O governo chinês reprimiu esses movimentos, incluindo ações como o uso de contas falsas em redes sociais para disseminar informações inverídicas.

Em 2019, a população de Hong Kong protestou contra um projeto de lei de extradição proposto pela chefe-executiva Carrie Lam. A lei foi amplamente rejeitada e desencadeou uma onda de manifestações. A situação se intensificou com confrontos violentos entre a polícia e os manifestantes, e o governo implementou uma lei de segurança nacional em 2020, o que levou a uma queda na economia da região. A popularidade de Carrie Lam e de seu governo despencou.

Os protestos em Hong Kong foram marcados por atos de violência crescentes, incluindo invasões de prédios públicos e confrontos diretos com o governo central. Houve também incidentes de ataques por grupos de homens armados, que foram associados à sociedade secreta do crime chinesa. Os estudantes desempenharam um papel fundamental nas manifestações, impulsionados pela educação e pela busca de seus ideais políticos. Além disso, outros atores importantes no conflito incluem a sociedade civil chinesa, o setor financeiro e as ONGs pró-democracia.

A construção da identidade em Hong Kong é destacada como um elemento crucial na compreensão do conflito atual. A população de Hong Kong se vê como tendo uma identidade única, distinta tanto da chinesa quanto da britânica, resultado de uma história compartilhada, cultura diferenciada e memórias históricas.

Às vezes não entendemos de onde vêm tamanho conflito entre cidadãos e governantes, mas a história de Hong Kong merece uma atenção: o sentimento de indignação e de nunca se sentir chinês traz as raízes dessa mobilização social. A busca por independência de um povo que não se sente parte da sociedade na qual é forçadamente incluído não pode ser deslegitimada. Em contrapartida, a repressão cometida pela China não será sanada sem grandes esforços de resistência, pois essa é a base do seu poder desde a revolução, que a coloca hoje entre as maiores potências globais, se encaminhando para ser a maior.

Veremos o desenrolar de mais um conflito secular, que, como tantos outros, não parece próximo do fim.

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Gustavo Dantas
Revista Brado

Estudante de Relações Internacionais, colunista da revista Brado