Insegurança alimentar e incerteza econômica: os efeitos da pandemia na mesa do brasileiro

Alice Alcântara
Revista Brado
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5 min readSep 30, 2020

*Formada em Relações Internacionais pela PUC-MG e mestranda em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp, Alice Alcântara é convidada externa da editoria de Economia da Brado.

Fotografia: Antônio Cruz/ABr

O Brasil possui papel importante no combate à fome como um dos maiores produtores agrícolas do mundo. Sua expansão agrícola, principalmente a partir da década de 1970, com a ocupação do cerrado (região Centro-Oeste), resultou no aumento da oferta de alimentos a nível nacional e, muito significativamente, a nível internacional, ocupando lugar de destaque no mercado de commodities.

O clima tropical e a grande extensão de terras são fatores favoráveis para a plantação e cultivo de alimentos, e mostram o forte potencial brasileiro para contribuir com a segurança alimentar. Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2019 o Brasil ocupou o terceiro lugar no ranking de maiores produtores mundiais, produzindo mais de 240 milhões de toneladas de grãos. A expectativa de um novo recorde esse ano foi cumprida, alcançando a marca de 257 milhões de toneladas na produção de grãos.

No que tange à produção de arroz e feijão, combinação presente no cardápio diário de boa parte da população, os números também são animadores. Segundo dados disponibilizados pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a produção de arroz na safra de setembro de 2020 foi estimada em 11,2 milhões de toneladas, um aumento de 6,7% em relação à safra anterior. A produção de feijão foi estimada em 3,2 milhões de toneladas.

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) define a segurança alimentar como “uma situação que existe quando todas as pessoas, em todos os momentos, têm acesso físico, social e econômico a alimentos suficientes, seguros e nutritivos que atendam às suas necessidades dietéticas e alimentares preferências para uma vida ativa e saudável”.

Em nível nacional, a disponibilidade de grãos no Brasil é mais que suficiente para alimentar toda a sua população. Sendo assim, por que a insegurança alimentar ainda é uma constante na vida de muitos brasileiros, posto que a produção segue batendo recordes anuais?

Um dos desafios para a segurança alimentar no Brasil é garantir que os alimentos produzidos sejam saudáveis e de fácil acesso pela população. A falta de acesso aos alimentos não é resultado da falta de disponibilidade, mas sim da escassez de renda de uma porcentagem da população. Os riscos para a segurança alimentar e a fome apresentam sinais desde 2016, com o início do desmonte, a partir de redução de recursos, de vários programas de cunho social. Um deles foi o programa Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, criado em 2006, e que tem por objetivo principal “assegurar o direito humano à alimentação adequada a todas e todos os habitantes do território brasileiro”.

Segundo o informe “O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo” divulgado pela FAO em junho deste ano, entre 2017 e 2019 o número de pessoas vivendo em situação de insegurança alimentar moderada no Brasil foi de 43,1 milhões. A insegurança alimentar moderada representa uma redução na quantidade de alimentos entre os adultos de uma família, enquanto a grave representa redução de alimentos entre as crianças.

O cenário econômico atual, enormemente afetado pela pandemia causada pelo novo coronavírus, manifesta ameaças e retrocessos econômicos e sociais concretos que refletem diretamente na segurança alimentar no Brasil. Dados divulgados pelo IBGE informam que o desemprego no país aumentou 27,6% durante quatro primeiros meses de pandemia, sendo as regiões Norte e Nordeste as mais afetadas pela crise. Pesquisa realizada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), apresentada em maio deste ano, mostrou que quatro a cada dez brasileiros perderam seu poder de compra desde o início da pandemia em março. Os trabalhadores informais e famílias de baixa renda representam o público mais afetado.

Nesse contexto, o auxílio emergencial, medida criada para reduzir os efeitos da crise provocada pela pandemia, foi uma saída para mais de 65 milhões de brasileiros. No valor de R$ 600 por trabalhador e podendo chegar até R$ 1.200 por família, o auxílio está beneficiando trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI) e beneficiários do Cadastro Único. A renda disponibilizada pelo auxílio está sendo para muitos a única fonte de sobrevivência. Pesquisa publicada pelo Datafolha mostra que 53% dos beneficiários investem o dinheiro recebido na compra de alimentos.

Apesar dos efeitos positivos na cesta de compras de mais da metade dos beneficiários, questões logísticas comprometeram e retardaram a liberação das parcelas do auxílio, deixando várias famílias de baixa renda à mercê da insegurança e vulnerabilidade econômica e alimentar. Agora, cinco meses desde a primeira parcela, as regras para o recebimento do benefício mudaram. Segundo as novas especificações, trabalhadores aprovados e beneficiários do Cadastro Único passam a receber uma parcela de R$ 300 para cada mês, de setembro até dezembro. Porém, a data de recebimento segue sem calendário definido. Para a população de baixa renda, que investe quase toda a renda em comida, a diminuição do valor do auxílio emergencial gera incerteza quanto ao acesso a uma alimentação adequada.

Fotografia: Licia Rubinstein/Agência IBGE Notícias

Aliado à diminuição do valor do auxílio, os preços de itens básicos da cesta de compra, como arroz e feijão, subiram 21,1% e 23,1%, respectivamente, desde o início do ano. Apesar do aumento na produção de grãos na safra 2019/2020, o preço dos alimentos segue em alta. O valor do pacote de arroz, que em média custa de R$ 15 a R$ 20, passou para R$ 40 no período entre agosto e setembro (2020).

O maior motivo para o aumento de preços do arroz, segundo economistas, é a alta no dólar, que segue na casa dos R$ 5 e bate recordes históricos. O alto valor do dólar faz com que o real fique desvalorizado para compradores estrangeiros, aumentando as exportações do país. Muitos produtores brasileiros preferem exportar e ter lucros maiores, diminuindo a oferta doméstica. O desabastecimento de arroz no mercado internacional também foi um dos motivos, gerando maior procura pelo arroz brasileiro por parte de outros países. Outro fator é o aumento da demanda interna, fruto do aumento da renda nos primeiros cinco meses de pandemia com o benefício emergencial e das medidas de isolamento social.

Em suma, a diminuição do valor disponibilizado pelo programa emergencial, aliado às incertezas quanto ao futuro da economia e ao aumento do preço dos alimentos básicos, pode fazer com que o Brasil retorne ao mapa da fome. A alta generalizada dos preços dos produtos tende a agravar a insegurança alimentar. Se não forem despendidos esforços para construir estratégias de garantias de emprego e renda para a parcela mais carente e vulnerável da população, a segurança alimentar no Brasil estará comprometida.

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Alice Alcântara
Revista Brado

Analista internacional e mestranda em desenvolvimento econômico