Invisibilidade e registro civil: o problema da garantia de acesso à cidadania no Brasil

Loraine
Revista Brado
Published in
3 min readDec 30, 2021
Registro errado do gênero na certidão de nascimento de Leonardo José da Silva, 38, deixou o pernambucano desempregado ao longo dos quatro últimos anos. Foto: Marina Meireles/G1

“Toda sexta-feira, o ônibus azul e branco estacionado no pátio da Vara da Infância e da Juventude, na Praça Onze, Centro do Rio, sacoleja com o entra e sai de gente a partir das 9h. Do lado de fora, nunca menos de 50 pessoas, todas pobres ou muito pobres, quase todas negras, cercam o veículo, perguntam, sentam e levantam, perguntam de novo e esperam sem reclamar o tempo que for preciso. Adultos, velhos e crianças estão ali para conseguir o que, no Brasil, é oficialmente reconhecido como o primeiro documento da vida – a certidão de nascimento. […]

Ao longo do discurso desses entrevistados, fica clara a forma como os usuários se definem: ‘zero à esquerda’, ‘cachorro’, ‘um nada’, ‘pessoa que não existe’, entre outras, todas expressões que confirmam claramente a ideia da pessoa sem registro de nascimento sobre si mesma como uma pessoa sem valor, cuja existência nunca foi oficialmente reconhecida pelo Estado”.

Retirado da tese de doutorado “Invisíveis: uma etnografia sobre identidade, direitos e cidadania nas trajetórias de brasileiros sem documento”, defendida na Fundação Getúlio Vargas (FGV) em 2019, o trecho acima foi o primeiro texto base da proposta de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2021.

Apesar de um grande percentual da população brasileira não ter ciência sobre isso, dentre as garantias de direito básico a uma pessoa civil previstas na Constituição vigente estão: direito à moradia; acesso à educação; e direito à cidadania. Estudos apontam que aproximadamente 1,4% da população brasileira viva não possui registro civil legal, ou seja, se encontram na condição de indigentes.

Segundo o IBGE, cerca de 3 milhões de brasileiros não possuem registro civil de nascimento. Desde 2015, o instituto acompanha a estimativa de crianças que não receberam certidão de nascimento no primeiro ano de vida. As diferenças regionais são evidentes: no Sul, 0,28% da população não tem registro civil; no Sudeste, 1,1%; Centro-Oeste, 1,23%; Nordeste, 2,5%; e no Norte, 7,5%. Os dados são de 2019.

Dentre as várias possíveis causas dessa indigência estão as precárias condições de vida e moradia, o que obriga o indivíduo a se abster de necessidades sociais para suprir necessidades pessoais básicas, e o escasso acesso à informação, que por sua vez cria uma barreira imaginária entre as novas primárias de dever e direito a um indivíduo. Essa condição mantém essas pessoas, às vezes por anos, em situações de abdicação, quando, por certo, “pequenos” esforços liquidariam essas pendências.

Além disso, a Lei nº 9 534 de 1997 fez com que o registro passasse a se dar de forma gratuita, o que levanta a questão: se não por fatores financeiros, por que uma grande quantidade de pessoas em diferentes regiões nacionais ainda vivem o estereótipo da falta do registro civil?

Agricultor paraibano vivia sem documentos e conseguiu emitir Certidão de Nascimento aos 62 anos. Foto: Jocelino Tomaz/Arquivo pessoal

Em maio deste ano, José Ferreira de Lima, um agricultor paraibano que vivia sem documentos há 62 anos, conseguiu emitir a Certidão de Nascimento, após um processo de mais de cinco anos, conforme noticiou o G1. Ele entrou com uma ação para solicitar um registro tardio de nascimento. Seu primeiro aniversário será celebrado em 1º de janeiro de 2022, a data escolhida para o registro. José, que vive de doações e bicos de agricultor, precisa da documentação para dar entrada em benefícios sociais, entre eles a aposentadoria.

O acesso à educação e à inclusão por meio da informação são de longe os maiores facilitadores nesse processo do fim da indigência social. Promover práticas de acesso à informação, ações comunitárias recorrentes e até mesmo uma maior presença do Estado dentro desses grupos negligenciados se dá como a melhor forma não só de precaver, mas também de solucionar o problema. Garantir o mínimo não é apenas um dever do Estado: é um gesto de humanidade obrigatório.

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