JUSTIÇA | As fraudes do auxílio emergencial e nossas falhas enquanto sociedade

O descaso da população brasileira com o princípio da solidariedade, amparada no “jeitinho brasileiro”.

Mateus Cunha Salomão
Revista Brado
3 min readJul 11, 2020

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Foto: Suno Ressearch

Como resposta à pandemia causada pela COVID-19 e aos desafios econômicos decorrentes da disseminação do vírus, o governo federal lançou o “auxílio emergencial”. O objetivo principal é complementar a renda de famílias mais pobres durante a recessão econômica. Ademais, seria um mecanismo designado para compensar as desastrosas autorizações do governo, por meio de medidas provisórias, a reduções salariais por negociação individual.

Dito isso, o auxílio foi aprovado no Congresso e sancionado pelo presidente da República. A Lei nº 13.982 estabelece os requisitos para o recebimento mensal do valor de R$ 600,00, sendo os principais não ter emprego formal ativo; ter renda familiar mensal per capita de até meio salário-mínimo ou renda familiar mensal total de até 3 (três) salários mínimos; e não ter recebido rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70 no ano anterior.

Não obstante, são corriqueiras as notícias de pessoas que recebem o benefício indevidamente. Um relatório do Tribunal de Contas da União apontou que mais de 620 mil pessoas receberam o auxílio sem ter direito. Dentre os beneficiários estão dentistas, nutricionistas e até mesmo marido de juíza.

A realidade é muito mais próxima do que se imagina. São jovens que moram com os pais pedindo o auxílio alegando que não possuem renda própria, empresários que alegam diminuição na arrecadação — o que, por si só, não justificaria o recebimento — e inúmeros outros casos.

O projeto de lei que deu origem ao Auxílio teve como justificativa a insuficiência dos baixos valores do Bolsa Família, chegando, por exemplo, a pagar somente R$ 41 a uma gestante vivendo abaixo da linha de pobreza. Desse modo, é perceptível que a preocupação do legislador foi de oferecer proteção excepcional e urgente às camadas mais pobres, que vivem na linha da miséria.

“Eles estão às portas da miséria, diante de uma pandemia que vai exigir isolamento domiciliar e restringir a circulação de consumidores nas ruas.” — texto extraído do PL 873/2020.

Apesar dessas diretrizes, a impressão que se tem é que o brasileiro, de forma geral, não entendeu o real propósito do projeto. São mais de 500 mil brasileiros recebendo o auxílio emergencial se valendo do “jeitinho brasileiro”, expressão utilizada para descrever a forma especial que nossa população tem de resolver situações adversas.

Mas, dessa vez, esse “jeitinho” pode configurar crime. No Código Penal, há uma tipificação chamada “estelionato”. É, em termos simples, obter uma vantagem ilícita a partir de uma fraude. A pena para esse crime é de até 5 anos, havendo ainda uma causa de aumento de 1/3 para os casos em que seja cometido contra os cofres públicos.

Ou seja, quando alguém se cadastra para o recebimento do benefício e mente deliberadamente sobre a condição financeira, pode incorrer na tipificação do art. 171 do Código Penal.

Mas a discussão vai muito além disso. Além de poder configurar crime, pedir o auxílio é romper com um dos principais princípios que regem a nossa sociedade: a solidariedade. É um ideal que nos acompanha desde os primórdios das formações das sociedades. O homem não é um ser que possa viver isolado, como bem dizia Aristóteles.

A solidariedade passa pelas atitudes de apoio e cuidados de uns com os outros. É um senso de corresponsabilidade. Há até aqueles que argumentam que, assim como temos direitos fundamentais, também possuímos deveres fundamentais, dos quais faria parte a solidariedade.

Sendo assim, pedir o auxílio emergencial sabendo que aquele valor não é necessário à própria subsistência rompe com valores da nossa vida em comunidade. Rasga-se a corresponsabilidade, uma vez que a fonte do dinheiro não é eterna e pode-se estar tirando o benefício daquele que realmente precisa, daquele que não tem o que colocar na mesa, daquele que não tem como alimentar os próprios filhos.

A solidariedade fornece as bases da convivência social, forma um vínculo de comunidade. Não podemos nos dar ao luxo de romper com isso. Devemos reconhecer o momento sombrio em que vivemos e fortalecer os vínculos. O auxílio não é para servidor público, não é para marido de juíza, não é para jovem de classe média. Que o “jeitinho” de querer se beneficiar a qualquer custo deixe de figurar no status quo brasileiro.

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Mateus Cunha Salomão
Revista Brado

Graduando em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória — FDV. Pesquisador de Direito Penal e Direito do Trabalho | Colunista de Justiça da Revista Brado.