O estigma do LGBT e a Aids

Ainda hoje associa-se a Aids como doença dos dissidentes sexuais. Mas por quê?

Gaby Minchio
Revista Brado
6 min readDec 9, 2020

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Foto: cottonbro/Pexels

“Peste gay”. “Doença cor-de-rosa”. “Bolha assassina”. “Câncer gay”. “Doença dos invertidos”. “Providência divina”. “Castigo pela promiscuidade”. “Aquilo que não pode ser nomeado nem falado”. Essas foram algumas das inúmeras denominações pejorativas dadas à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids), causada pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), quando teve sua primeira aparição na raça humana por volta dos anos 80.

Apesar de toda evolução em relação ao conhecimento acerca do HIV e da Aids, o que contribuiu para a melhora nos tratamentos da infecção, ainda há muitas assimilações que destroem mais que o vírus.

Antes de mais nada, é imprescindível que não se confunda um com a outra; eis a diferenciação entre HIV e Aids — eles não são a mesma coisa:

Não, HIV e Aids não são a mesma coisa — Fonte: YouTube canal Quebrando o Tabu

Agora é possível prosseguir com essa discussão tendo pontuado o comum equívoco. Ressalto que não será possível sair daqui compreendendo tudo relacionado ao assunto, mas é preciso que falemos sobre o que vem marcando os dissidentes sexuais desde o “boom” da Aids. Aponta-se o dedo para o outro, mais uma vez a comunidade sobre a qual são depositados os estigmas e metáforas da destruição; não faltam argumentos para a LGBTfobia.

A Aids começou a ter seus primeiros hospedeiros humanos por volta de 1981, porém o vírus HIV foi descoberto apenas em 1983 — o que fez com que profissionais da área da saúde e a população em geral tivessem que conviver com essa doença por pelo menos dois anos sem saber do que realmente se tratava.

Nesse cenário, tiveram que trabalhar “com os olhos vendados” para combater a doença. E algumas medidas foram tomadas. Uma delas foi a de estabelecer o que chamavam de grupo de risco, os 5 H’s: homossexuais, heroinômanos (quem sofre de dependência em relação à heroína), hemofílicos, hookers (profissionais do sexo, em inglês) e haitianos — pois é!. Com isso, construiu-se que quem fazia parte desse grupo poderia contrair o vírus e quem não fazia estava fora de risco.

Como identificou-se que um dos grupos que mais estava sendo infectado era o dos homossexuais, foi formado, junto de todos pré-conceitos já existentes, mais um contra a comunidade LGBTQIA+.

Não bastava ser LGBTQIA+, era também transmissor de uma “peste gay”. Além de lutarem contra julgamentos advindos da orientação sexual, eram marginalizados em dose dupla. Com isso, a questão de sair do armário foi ainda mais difícil. Abriam uma porta ao assumirem-se LGBTQIA+, mas ainda mantinham uma outra trancada quanto à doença. Ou pior, não abriam nem a primeira porta por medo da repulsa e assimilação da comunidade com o HIV.

A ideia de ter tal doença envolvia um misticismo. E, para a época, é compreensível o medo, visto que os índices de letalidade eram assustadoramente altos para quem contraía o vírus e se desenvolvia em Aids. O que não era e ainda não é entendida é toda essa culpa para com quem é LGBTQIA+.

Depois de um tempo, a Aids também ficou visível para os heterossexuais e demais grupos. E, com a crescente no saber acerca da doença, o conceito de “grupo de risco” foi substituído pelo de “comportamento de risco”, em que o que interessa, por exemplo, é o número de parceiros sexuais que o indivíduo tem e o estado de infecção ou não deles.

Todavia, essas concepções do passado ainda permeiam a nossa população LGBTfóbica. Antes, quando não existia o teste para saber se havia algum tipo de doença que poderia prejudicar na doação de sangue, o simples fato de ser homossexual colocava a pessoa como suspeita para poder doar.

É por isso que se criou, nos bancos de sangue, essa restrição quanto a parte da comunidade, porém hoje ela não faz mais sentido. E reafirmo que essa impossibilidade de doar sangue por parte dos homens que fazem sexo com outros homens cis só foi alterada em 2020 em meio à pandemia com a baixa dos bancos de sangue — porém a justificativa não foi exatamente essa.

Foto: Ece Ak

Apesar de todo conhecimento já existente, ainda há uma disseminação considerável da doença, visto que ela continua sendo um tabu em meio ao século XXI. É necessário discutir sobre isso. Precisamos reforçar que o HIV acompanha ciclos de exclusão e ainda há o medo quanto a quem contrai o vírus. Trata-se hoje de uma epidemia social.

Mesmo com toda a descoberta e desenvolvimento quanto à prevenção contra a doença e o tratamento para quem já a possui, ainda existem casos de novas infecções mesmo que de maneira reduzida. No Brasil, a epidemia tem essa diminuição de casos recentes na população em geral, no entanto possui uma concentração de aumento de infecção em grupos específicos: entre mulheres trans e travestis, o número da perduração de HIV passou de 30%, e entre homens gays e bissexuais, subiu cerca de 6% de 2009 para 2016.

Há uma ideia de culpabilização dessa parte da população, mas o que fica escondido e poucos buscam saber é que é o estigma que vem matando e permanecendo com essa crescente de casos de HIV entre LGBTQIA+, que são excluídos e discriminados socialmente.

É preciso que seja dada uma atenção a isso. Educação, prevenção e testes de maneira individualizada contribuiriam muito para uma redução de casos; mas em que cenário a saúde da população LGBTQIA+ é considerada pelo Estado?

Hoje, além de medicamentos para o tratamento do vírus, existem, não só a camisinha — que é fundamental — , mas a profilaxia pré-exposição ao vírus (PrEP) e o PEP, que é utilizado depois de uma possível exposição recente ao vírus. Todos disponibilizados pelo SUS. Foto: Miguel Á. PAdrñán.

No documentário “Cartas além dos muros”, conseguimos ver que o número de LGBTQIA+ mortos por decorrência da Aids, em 2015, foi de mais de 3 mil, o que é consideravelmente superior aos de notificações de mortes por LGBTfobia no mesmo ano, por exemplo. E há uma discussão quase inexistente sobre esse “genocídio” populacional.

Afinal, para um país que tem um representante homofóbico e sorofóbico, fica quase impossível frear a epidemia com a atuação do Estado. Na última semana, por exemplo, com o vencimento do contrato com a empresa que realizava exames de genotipagem HIV e hepatites virais no Sistema Único de Saúde (SUS), o Governo suspendeu tais testes que são fundamentais para determinar quais medicamentos devem ser combinados para que pacientes com tais infecções façam seus tratamentos de maneira correta.

Ademais, com figuras “públicas” que possuem números exacerbados de seguidores com discursos extremamente conservadores e inequívocos, também fica extremamente complicado crescer e evoluir quanto a esse assunto.

Com mais um discurso homofóbico, Ana Paula Valadão persiste com associação errônea sobre somente LGBTQIA+ contraírem HIV. Fonte: YouTube canal UOL

Não é de hoje que a cantora Ana Paula Valadão tem falas preconceituosas carregando sua religião como justificativa para seus atos criminosos de LGBTfobia. E torna-se cansativo pensar em discutir contra isso, porque é visível que ela sabe que está ferindo a comunidade e o intuito é realmente esse.

Convivemos com preconceito e falta de informação geral que tornam a ignorância uma normalidade em relação ao assunto. De tanto ouvir falar sobre determinadas conceituações e ponderações, acabam convertendo aquilo em uma verdade. E é isso que aconteceu com o HIV e a Aids em relação aos LGBTQIA+.

Respeito. Acesso. Dignidade. Saúde. Não é pedir muito — Foto: Ece Ak

Nosso editor, Murilo Hill, em seu texto “Por um vírus bicha”, que faz parte do projeto “Histórias da Queerentena”, traz uma visão acerca de toda essa carga de julgamento e dor que é colocada em cima de quem é dado como culpado e real “trasmissor” de tal vírus.

“Aprendemos desde cedo que encontraríamos na esquina uma infecção que nos custaria a vida pelo prazer. E, desta infecção, aprendemos o silêncio. Inimiga mortal que deve ser afastada a qualquer custo. O mais caro, claro, a ignorância.”

Para finalizar, assim como comecei, algumas verdades — verdadeiramente verdadeiras — precisam ser pontuadas:

Conhecimento nunca é demais, principalmente quando a falta dele é um dos motivos para que vários dos que fazem parte da nossa comunidade continuem em uma posição que não os pertence.

Este texto é parte da campanha de combate e prevenção à Aids desenvolvida pela Revista Brado durante o Dezembro Vermelho.

Saiba mais:

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Gaby Minchio
Revista Brado

Comunicóloga pela Ufes | Pós-graduanda em Formação do Escrito pela PUC-Rio | Fui colunista da Revista Brado | Escrevo textos que surgem do nada também