LGBTQQIAAACPPF2k: quando nenhuma das letras te serve

Ainda se composta por todas as letras do alfabeto, nossa sigla nunca irá nos representar completamente. E isso pode ser libertador

Vitória Bordon Santos
Revista Brado
6 min readJun 16, 2021

--

*Estudante de Publicidade e Propaganda na Ufes, redatora publicitária e social media, Vitória Bordon é convidada externa da editoria de LGBT+ da Brado.

Ao mesmo tempo em que cria margem para o reconhecimento de novas identidades e para a luta política, o crescimento da sigla LGBTQ+ revela, em nossa sociedade, uma necessidade de controlar aquilo que há de mais pulsante e natural em todos nós: nossos corpos e sexualidades. Foto: Sharon McCutheon/Pexels

Antes do texto, a pergunta: você sente que sua(s) letra(s) te representa(m)?

Você já olhou para nossa sigla e teve a sensação de não se encaixar de verdade em nenhuma daquelas 15 letras? Como se você não cumprisse os requisitos básicos para se encaixar de fato em nenhuma das possibilidades ou como se nenhuma delas representasse 100% da sua forma de sentir e viver sua sexualidade?

Por muito tempo, esse vazio e essa sensação de não pertencimento na nossa comunidade me tiraram o sono e me fizeram questionar: se não aqui, nessa sigla, onde se encaixam corpos/desejos como os meus?

Mas conversando com outras pessoas LGBTQ+ do meu convívio, percebi que não estava sozinha e que a maioria de nós só “escolhe a letra que mais se parece com a gente” e passa a vida se sentindo deslocado por não ser tão bi/lésbica/gay/trans/pan/queer/poli/NB quanto supostamente deveria.

Partindo dessas inquietações eu te convido a conhecer um pouco mais a fundo sobre como se deu o surgimento da sigla que hoje nos representa enquanto grupo político e, acima de tudo, te convido a questionar: afinal, a quem interessa definir, categorizar, rotular e aprisionar nossa sexualidade em pequenas palavras?

Foto: Rodnae Productions/Pexels

A revolta de Stonewall não foi chamada de LGBT, mas ainda assim ela marca o dia do orgulho

A sigla LGBTQ+ tem sido usada ao longo dos anos para representar pessoas cujo gênero, sexualidade ou forma de se relacionar romanticamente não está de acordo com as regras estabelecidas pelo discurso cisheteronormativo.

Hoje, 53 anos após a rebelião de Stonewall Inn, nós comemoramos nosso “orgulho LGBT” sem sequer nos atentar para o fato de que, em 1969, ano em que ocorreram os protestos, a sigla sequer existia. Bissexuais, lésbicas, travestis, homens e mulheres trans e todos os tipos de pessoas que desviavam das normas de gênero e sexualidade eram categorizadas como “gays”.

Não por acaso, após os 6 dias de protestos que começaram em Stonewall, surgiram duas novas organizações com o intuito de representar toda a diversidade da nossa comunidade: a Gay Liberation Front (GLF) e a Gay Activists Aliance (GAA).

Marcha da Gay Liberation Front na Times Square, Nova Iorque, em 1970. Foto: Diana Davies

No Brasil, fomos do GLS ao LGBT: a luta por espaço na sigla é também a luta para existir

No Brasil, o movimento LGBTQ+ ganhou notoriedade em plena ditadura militar, com níveis altíssimos de repressão que levaram a mortes, torturas e prisões arbitrárias de pessoas da nossa comunidade. Na época, nosso grupo era conhecido como Movimento Homossexual Brasileiro (MHB) ou Movimento Gay do Brasil.

Um pouco mais tarde, em 1994, passamos a adotar a sigla GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) para abraçar mulheres que não se sentiam representadas como “gays” e outras pessoas a favor da causa. Em 2005, durante o XlI Encontro de Gays, Lésbicas e Trangêneros (GLT), a letra B foi incorporada para representar os Bissexuais (GLBT) e foi lançado o coletivo de transexuais (um outro T).

Somente em 2008, depois de muita pressão do movimento lésbico, a sigla oficial passou a ser LGBT e ficou convencionado que o T deveria representar travestis, transgêneros e transexuais.

Arte: Vitória Bordon

Hoje, é possível encontrar versões da sigla LGBTQ+ com mais de 10 letras, cada uma delas evidenciando uma possibilidade de transgredir a norma. Mas essa necessidade de definir e categorizar nossos corpos começa bem antes, na virada do século XVlll para o XlX, com a criação do “homossexual” como espécie e categoria jurídico-psiquiátrica, segundo artigo científico publicado na Revista Psico em 2011.

Ou seja, a necessidade de categorizar sexualidades e corpos fora do padrão nasce com o desejo de eliminá-los da sociedade. E, para isso, criam-se novas leis de extermínio e novas patologias no discurso médico e jurídico para classificar nossos corpos e desejos como não naturais. Não é à toa que, ainda hoje, ser LGBTQ+ é ilegal em 71 países. Também não à toa, a transexualidade só foi removida da lista de transtornos mentais da OMS em 2019.

É nesse momento que o discurso produzido sobre a sexualidade passa a falar mais sobre o sujeito do que ele próprio, como descrito pelo filósofo francês Michel Foucault em 1988. Ou seja, é nesse momento que “ser homossexual” — leia-se: ser LGBTQ+ — deixa de falar apenas sobre as práticas sexuais de uma pessoa e passa a falar sobre gostos, comportamentos e características que pessoas “homossexuais” deveriam ter.

Capa do jornal independente Lampião da Esquina, produzido e comercializado por pessoas LGBTQ+ desde a ditadura militar no Brasil, evidencia o esforço jurídico e político do Estado brasileiro para criminalizar e eliminar pessoas da nossa comunidade. Acesso <https://www.ibdsex.org.br/collection/lampiao-da-esquina-edicao-13/>

Hoje, em uma guerra discursiva interminável, ao mesmo tempo que construímos novas identidades e palavras que representem esses novos modos de existir, o discurso hegemônico constrói novos estereótipos, rótulos e expectativas que uma pessoa precisa atender para se encaixar em algum lugar.

E, junto dessa necessidade de classificar nossos corpos e sexualidades em uma única palavra, nasce em nós o desejo de conseguir, de alguma forma, se encaixar nela. Porque, para nós, isso significa que, de certo modo, (finalmente) conquistamos o direito de existir.

Gêneros e Sexualidades: para além de letras, formas de perceber/existir no mundo

A adição de novas letras na sigla LGBTQ+ com o passar dos anos me mostrou uma coisa: antes de mim, outras pessoas se sentiram deslocadas e precisaram criar seus próprios espaços no mundo. Precisaram criar suas próprias letras.

Isso porque, em um mundo que disputa narrativas, controlar o discurso sobre alguns corpos é também ter poder sobre eles. E a nossa luta é para que tenhamos poder, sobretudo, sobre nós mesmos.

Mas depois de conhecer a história do nosso movimento e entender a função e a importância política que essa sigla tem, eu passei a vê-la não só como uma ferramenta perversa do discurso hegemônico (afinal, não se pode combater aquilo que não se pode nomear) mas também como uma oportunidade de futuro e uma conquista coletiva.

Foto: Ketut Subiyanto/Pexels

Conquista coletiva porque lutar contra o CIStema nunca foi fácil, mas nós seguimos vivas. Como pessoas LGBTQ+, a vida nos obriga a tirar o melhor do pior sempre e, nesse caso, isso equivale a usar uma sigla que impõe limites sobre os nossos corpos para buscar representação política e lutar por uma agenda que, de fato, nos garanta direitos.

E oportunidade de futuro porque as limitações da sigla me fizeram ver que pessoas como eu sempre existiram, mesmo que não houvesse uma letra ou uma palavra para representá-las. Além disso, estar nesse não-lugar nos ajuda a entender a sexualidade humana mais como um grande dispositivo que opera em diversas áreas das nossas vidas, e menos como um Clube do Bolinha em que precisamos preencher requisitos para fazer parte.

É importante frisar que a nossa sexualidade, nossos corpos e os nossos desejos — quaisquer que sejam — não precisam ser categorizados para que sejam válidos ou para que possamos existir. Pessoas como nós existem muito antes de inventarem palavras, leis e definições médicas para nos combater. E estarmos vivas hoje é, sem dúvida, nosso maior motivo de orgulho.

Foto: Armin Romoldi/Pexels

Este texto contou com informações e estudos dos artigos Sexualidade e verdade em Foucault (Colunas Tortas); Psicologia e o dispositivo da sexualidade: biopolítica, identidades e processos de criminalização (Revista Psico); De cores e matizes: sujeitos, conexões e desafios no Movimento LGBT brasileiro (Sexualidad, Salud y Sociedad — REVISTA LATINOAMERICANA); JUNHO: O MÊS DO ORGULHO LGBT (Blog Petra & Weid Advogados Associados); e Guarujá: perspectivas para o público LGBT (Revista Don Domenico).

Gostou deste texto? Deixe seus aplausos (vão de 1 a 50) e compartilhe.

Siga a Brado nas redes sociais: Instagram; Facebook; Twitter; e LinkedIn.

--

--