Maternidade dupla? Uma é bom, duas é melhor ainda

Com o aumento da união homoafetiva no Brasil, mulheres fazem uma revolução silenciosa: amam-se e formam famílias

Isadora Wandenkolk
Revista Brado
9 min readSep 4, 2021

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Paula Frison, Camila Krauss e Benjamin Frison Krauss. Foto: Juliana Pacheco

“Ter duas mães é poder comer duas receitas de brigadeiro no prato de uma vez só. Brigadeiro já é bom, duas vezes é melhor ainda”. Foi com esse bom humor que Camila Krauss definiu sua maternidade. Casada com a psicóloga Paula Frison, as duas são mães do pequeno Benjamin, de um ano e um mês, que esbanja simpatia com um sorriso fácil. Ainda que de forma virtual, a família abriu as portas de casa para a Revista Brado e compartilhou suas experiências.

Eles estão entre as mais de 73 mil famílias homoafetivas que existem no Brasil, de acordo com dados da Anoreg (Associação dos Notários e Registradores do Brasil). Famílias que, apesar da opressão e dos retrocessos vigentes, estão cada vez mais se afirmando e resistindo pelo direito de ser na sociedade. Uma realidade que também é refletida nas estatísticas. Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram o aumento do índice de casamentos homoafetivos no país. Em 2018, o crescimento foi de mais de 61%. Já em 2019, o índice subiu 35% em relação ao ano anterior.

“A gente não pode dar mole, sabe? E é mulher com mulher, homem com homem, mãe solo… Tem que pôr filho no mundo mesmo, não pode ter medo. Porque isso é a gente se fortalecendo, para poder ir amarrando essa rede aí, de que a gente existe sim e é isso!”, opina Camila Krauss.

O começo de tudo

Com o mesmo alto astral que demonstra para seus mais de 25 mil seguidores no Instagram (@duasmaesdobenjamin), Paula Frison conta que o filho do casal é a realização de um sonho. Logo que se conheceram, as duas conversaram sobre maternidade e, de alguma forma, já sabiam que o Benjamin viria. “Desde que a gente se conheceu, acho que no terceiro ou quarto dia, a gente já falava sobre ter filhos. A Camila era bem mais segura do que eu sobre isso, né? Sobre ter filho nesse momento da vida. Aí depois que eu me mudei para São Paulo a gente foi colocar em prática esse sonho”, conta.

Embora não seja uma realidade comum para todos os casais, as duas não enfrentaram muitas dificuldades para colocar o plano em ação. De acordo com elas, o período de pesquisa e os primeiros contatos com os médicos foram tranquilos. “Quando a gente fez a consulta era 2019. É pouco tempo, mas eu percebo que têm muitas mães que tiveram filhos nesse período também. E aí eu acho que quanto mais mulheres e mães estiverem atuantes, nas redes sociais que seja, mais informação a gente vai tendo, né?”, comenta Paula.

“Eu acho que é uma transformação de mundo que a gente tá participando com uma força muito maior agora, né? Com a quantidade de casal homoafetivo entendendo e podendo sentir que agora é mais real”

(Camila Krauss)

Foto: Bianca Nery

O casal conta que a gravidez, embora tenha ocorrido em meio à pandemia, foi tranquila e muito bem curtida pelas duas. A parte mais difícil da gestação, na verdade, veio antes da barriga: a ansiedade do tratamento. Elas engravidaram pelo método de Fertilização in Vitro, conhecido como FIV. Para Camila, esse período é a verdadeira prova de fogo das tentantes: “lidamos super bem com os enjoos e as questões normais de uma gestação. Eu não lembro de termos passado apuros. No tratamento, sim. O tratamento eu costumo dizer que é um teste para ver se estamos brincando de casinha, né? Ou se o amor é de verdade. Porque é a ansiedade, a incerteza, são as etapas do tratamento…”.

Paula explica que a forma que acharam para lidar com a ansiedade foi apenas aceitar a existência dela e trabalhar o olhar positivo sobre as situações. “Eu recebo muita mensagem de pessoas que querem fazer o tratamento, muita mesmo. E aí sempre me perguntam como lidar com a ansiedade. Gente, abraça a ansiedade. Não tem como não ter ansiedade! O tratamento é muito incerto, né? Você não sabe se vai dar certo ou em quanto tempo vai dar certo. E é uma coisa que você não tem planejado, então, é difícil mesmo. E aí é a questão de você saber driblar a ansiedade no dia a dia”.

“Maternar pode, sim, ser leve e bonito”

A maternagem muitas vezes, principalmente para mães de primeira viagem, pode ser um desafio. A chegada de uma criança em uma família transforma todas as estruturas, desde o corpo da gestante (em casos em que há gestação) até o cotidiano do casal. Paula e Camila contam que se prepararam para enfrentar da melhor forma possível as confusões das mudanças. Com muita leitura, parceria e amor, as duas contam que tiram de letra o caminho que elas mesmas escolheram trilhar.

Camila Krauss afirma que a grande dica que daria às mulheres que desejam ser mães é: prepare-se por meio da leitura. “A Paula se preparou muito como mãe gestante. Eu tenho certeza que isso fez total diferença. A gente sempre foi da leitura aqui em casa, mas durante o tratamento a Paula teve uma fome de leitura que eu tenho certeza que foi isso que deixou a gente segura. A gente não foi pega de supetão por nada”, conta. “Eu acho que conhecimento é tudo, né? Para tudo e qualquer fase na vida. Tudo que a gente passa de complicação, a gente recorre à leitura. O conhecimento nos liberta muito dos medos comuns”, completa Paula Frison.

“Se você não lê, não se prepara, acaba ouvindo informações boca a boca que não são parte da sua realidade. É sobre não ficar refém. Então, quando você tem o conhecimento baseado na literatura, você fica mais autoconfiante para tomar suas próprias decisões”

(Camila Krauss)

Foto: Jeniffer Beuno

Sobre as dificuldades do dia a dia, as duas dizem preferir sempre olhar o lado bom das coisas. O casal acredita ser possível se adaptar ao novo e curtir da melhor forma esse momento único na vida delas. “Eu entendo que para muitas mulheres é muito difícil. Não é invalidando a dificuldade da maternidade, mas é trazendo um olhar, sim, romântico para algo que também pode ser bom. Até porque foi algo que a gente desejou muito”, explica Paula.

As mudanças na vida conjugal são inevitáveis com a chegada de um novo integrante à família, mas, segundo elas, o segredo para superar o período de transição é ter paciência, diálogo e muita cumplicidade. “Tem até uma informação que diz que nos dois primeiros anos do bebê, o índice de divórcio é muito alto. Talvez por essa falta de diálogo, de cumplicidade mesmo. De saber reconhecer: ‘tá muito difícil agora… Mas e se a gente se olhar mais? Se a gente se cuidar mais enquanto casal?’, né?”.

Enquanto Camila distraía o pequeno Benjamin, que estava entretido brincando de arremessar algumas garrafas, Paula relatava que a relação entre o casal acabou mudando completamente. “Não tem como não mudar. Tem um serzinho ali que depende totalmente de vocês, né? Então não dá pra esperar que o casal vai ser igual era”, relata.

“Não é que não tenham dificuldades. Tem! Mas tem muito mais coisa boa. A maternidade real é também muito bonita” (Paula Frison)

Paula conta que na maior parte do tempo quem fica com a criança é ela e que não encara isso como um problema. Nem mesmo o cansaço. Segundo a psicóloga, embora seja um ritmo pesado, o corpo acaba se adaptando bem às mudanças na rotina. “A gente tende sempre achar tudo bonito, o lado bom das coisas e vivenciar da melhor maneira. É o que é? Então como é que a gente pode lidar com isso? Aqui em casa é assim, tudo leve. E não é da boca pra fora, não. A gente tende a fazer isso sempre”, relata em meio às risadas da esposa e do filho, que brincavam durante a entrevista, comprovando que leveza é com eles mesmos.

Existindo e resistindo para a mudança acontecer

Mesmo espalhando tanto amor e cor pelo mundo, famílias homoafetivas ainda precisam lidar com olhares e situações de preconceito em um país que apresenta pelo menos 4 casos de LGBTfobia por dia. Segundo a mestre em Psicologia Social Laís Sudré Campos, trata-se do reflexo da naturalização da heterossexualidade como o único modelo possível de relacionamento. Esse ideal heteronormativo influencia diretamente a forma como famílias homoafetivas são vistas socialmente, principalmente quando essas famílias têm filhos.

“No imaginário social, muitas pessoas não vão nem pensar na possibilidade de duas mulheres terem um filho ou de dois homens terem filhos, né? Daí a gente fala de relacionamentos homoafetivos de uma forma geral, porque o que está colocado é que essa família tradicional é heterossexual, cisgênera, monogâmica. Então, só dentro dessa família seria possível pensar na geração e na criação dos filhos”, explica Campos.

A psicóloga observa que até mesmo as pessoas que acham aceitável que um casal homossexual adote, gere ou crie filhos juntos acabam expressando uma visão negativa disfarçada de preocupação. Para ela, as pessoas partem do próprio preconceito para justificá-lo. “Muitas vezes, entram numa discussão de criação. Perguntam: ‘o que vai ser dessa criança que está sendo criada por duas mulheres? Será que não falta alguma coisa? Será que essa criação não vai ser deficitária ou vai gerar prejuízos para essa criança?’ Às vezes até justificadas com base no próprio preconceito, né? Falam: ‘essa criança vai sofrer muito bullying na escola; como é que a criança vai explicar que tem duas mães?’ e coisas do tipo”.

Na família da Paula e da Camila, o preconceito alheio nunca foi uma questão. As duas afirmam que são assertivas ao defenderem seus posicionamentos e acreditam que isso não dá abertura para que as pessoas se sintam à vontade para desrespeitá-las de alguma forma.

“Eu acho que como a gente se coloca, já não dá nem abertura para alguém questionar. O máximo que acontece é perguntarem de quem é o óvulo. Às vezes é por curiosidade, por ser um outro casal homoafetivo que tem interesse em fazer isso de cruzar os óvulos. Como sempre, observo quem está perguntando e a maneira com que está perguntando. E aí eu decido se respondo ou não. Acho que também tem muito isso de perguntar de quem é o óvulo como uma tentativa de invalidar o maternar, como se fosse apenas isso”, afirma Paula Frison.

Sobre os olhares tortos para a maternidade dupla, a família acredita que se trata de um processo de transição e saída de uma conduta heteronormativa, que, enquanto algumas pessoas estão se afirmando, outras estão começando a entender os diferentes modelos familiares. “É também ter um pouco de paciência, cautela e saber mostrar com atitude, com os posts do Instagram, o que é e o que não é, né? Então, eu acho que o mais substancial é que pra gente aqui tudo está muito certo: de que somos duas mães igualmente. Tá tudo certo. A única diferença é que uma amamenta, a outra não”, desabafa Paula.

“São lutas. Eu não acho que seja tão rápido assim mudar um pensamento coletivo. É uma coisa que você vai construindo e construindo e construindo. E aí chegam os filhos e eles vão construindo também. É preciso paciência, amor, exemplo e estando ali: existindo e resistindo para essa mudança acontecer”

(Paula Frison)

Quando questionadas sobre o medo do Benjamin sofrer bullying na idade escolar, as mamães mais uma vez lidam com tranquilidade a respeito do assunto. Elas afirmam que essa não é uma preocupação, porque acreditam que independente do modelo familiar, as crianças e adolescentes estão sujeitas a passarem por situações do tipo. Para o casal, a melhor forma de lidar com isso é oferecer suporte familiar para que a criança aprenda a lidar.

“O ponto é ter uma base forte. Uma base de amor, de acolhimento, de escuta… Estar atenta ao que acontece, né? Ter uma presença forte na vida dele para a gente poder dar o suporte necessário e ele aprender a lidar com isso tudo para a vida. E a gente vem construindo aqui essa base forte pra ele estar preparado. Vai passar? Claro que vai. Não necessariamente por ter duas mães”, comenta Paula. E, ainda com muito bom humor, Camila completa: “Até lá a gente já vai ter uma resposta bem porreta pra ele dar. Tá tudo certo, num tem como se livrar dessas chacotas”.

“Essas crianças que estão vindo já são a revolução. A gente tá cavando um mato grande, e elas já vêm com outra cabeça total. Não tem nem como… Outra visão de mundo. Pra melhor! Não tem governo, não tem religião que segure”

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Isadora Wandenkolk
Revista Brado

Jornalista por vocação. Pesquisadora, ativista, questionadora e curiosa.