Muito além do mês de março: precisamos dar valor às nossas artistas mulheres

Mylena Ferro
Revista Brado
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3 min readMar 8, 2021
A revolucionária Pagu. Foto: Reprodução/O Globo

No mês em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, secretarias, coletivos e centros culturais celebram programações completamente dedicadas às artistas mulheres do Brasil. Em São Paulo, a Secult-SP preparou oficinas, exposições, saraus, grupos de leitura e debates sobre a realidade da mulher no século XXI. Em tempos normais (porque me recuso a chamar dias que ultrapassam as mil e quinhentas mortes por Covid-19 de um suposto “novo normal”), haveriam festivais cujas estrelas principais seriam as mulheres, com temáticas e estéticas destinadas ao suposto feminino. Mas, para além de celebrar, precisamos incentivar e proteger legalmente a dignidade das mulheres artistas. E, corrigindo a frase anterior: será que realmente celebramos as meninas e mulheres que fazem arte no país?

Quantas obras-primas feitas por mulheres nas artes plásticas você conhece? Quantas artistas mulheres que produziram antes do século XIX você já ouviu falar? Aposto que a resposta a essas questões, se levar a alguns nomes, gera uma lista muito menor do que se elas estivessem questionando sobre artistas homens. Mas será que realmente elas não existiam ou só não podiam se mostrar?

“Não é tarefa fácil encontrar registros da influência feminina nessa parte da história. Vasculhando, a gente vai levantando muitos outros nomes que ficaram esquecidos na história. Batalho muito pra tentar localizar esses registros”.

(Ana Beatriz Pereira, professora da UNESP).

Trazendo o debate para o século XX e XXI, a realidade muda bastante. Não que o machismo não esteja mais dentro da indústria cultural: ele só se traduz de formas diferentes. Hoje as mulheres podem, sim, fazer arte. Mas desde que sejam produzidas, empresariadas e conduzidas por homens. Elas têm que estar ali dando voz e rosto ao que eles querem. Pensando no Brasil, temos muito mais compositores de sucesso do que compositoras — especialmente até a década de 90.

Sou apaixonada e consumidora assídua da MPB, mas consegui lembrar sem esforço de um número de produtoras e compositoras famosas que, juntas, cabem nas mãos.

Sabemos que não é por acaso, é uma construção nada acidental: enquanto os homens burgueses eram incentivados a participar de uma esfera cultural, a mulher, mesmo que burguesa, era incentivada a se manter na esfera doméstica. São eles os encorajados a falar e fazer o que pensam e querem desde sempre. De nós, espera-se que fiquemos quietas ou, no máximo, que teçamos bordados em quarentenas.

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas

Sofrem pros seus maridos, poder e força de Atenas

Quando eles embarcam, soldados

Elas tecem longos bordados

(Chico Buarque e Augusto Boal)

Quando dentro da cena cultural, muitas vezes as mulheres seguem sendo abusadas de todas as formas e levadas, muitas vezes, à desistência da carreira ou mesmo à morte. Quando conseguem fugir dos abusos e denunciar, são postas como interesseiras e têm a carreira paralisada e dificultada, como foi o triste caso da cantora estadunidense Ke$ha. Quando tomam as rédeas da própria carreira e são incisivas no que querem, como Rita Lee ou Anitta, são tidas como esquentadas, loucas, barraqueiras e vagabundas.

Não tenho respostas concretas sobre como melhorar essa realidade — nem me proponho a isso. Mas acho que um bom começo é nos questionarmos o que e de quem estamos consumindo. Questionar quais mulheres com vozes artísticas potentes a gente incentiva. Refletir sobre qual lado a gente acredita quando uma mulher vem denunciar um empresário abusador e nos perguntar de onde vem a necessidade de chamar mulheres donas da própria carreira de loucas.

E que também celebremos! Viva as Pagus, Anittas, Ritas, Beyonces, Gals, Elis, Agnes, Petras, Fernandas, Lauras, Tarsilas, Clarices e todas as outras incontáveis.

Deixo, abaixo, alguns produtos culturais produzidos e protagonizados por mulheres. Mas, repito: mais do que celebrá-los, espero que possamos — enquanto sociedade — incentivar as tantas e potentes artes que vêm delas. Ou melhor: de nós!

Sans toit ni loi, 1985, Agnes Vardá

Elena, 2012, Petra Costa

A teus pés, 1982, Ana Cristina César

Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, 1969, Clarice Lispector

Love, Ella, 1957, Ella Fitzgerald

Elza Negra, Negra Elza, 1980, Elza Soares

Quarto de despejo, 1960, Carolina de Jesus

Essa mulher, 1979, Elis Regina

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