Mulher, um devir

Gênero: raça, projeções e subjetividades

Thays Moreira
Revista Brado
4 min readJul 28, 2021

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Angela Davis. Foto: Arte de Lari Arantes sobre foto de arquivo/O Globo

Por vezes, as lutas pelos direitos das mulheres estiveram embranquecidas e masculinizadas, como é o caso da primeira Convenção Nacional pelos Direitos das Mulheres, realizada no ano de 1851 em Massachusetts. O evento foi o pano de fundo para o mote de Sojourner Truth, única mulher negra presente no evento, — Ali ela evidenciou que não estava somente cansada da opressão racista, mas também do sexismo a que era acometida no cotidiano e dentro da própria luta de mulheres por direitos políticos.

Naquela ocasião, era discutido, dentre outros, o direito ao sufrágio feminino, quando uma das maiores e mais potentes palavras de ordem do movimento de mulheres do século XIX emergiu através de seu discurso em Ohio, 1951:

“Eu lavrei, plantei, e ceifei para celeiros e nenhum homem podia ajudar-me! E não sou eu mulher? Podia trabalhar tanto e comer tanto como um homem — quando podia fazê-lo — e suportar o chicote também! E não sou eu mulher? Dei à luz treze crianças e vi a maior parte delas serem vendidas para a escravatura, e quando chorei a minha dor de mãe, ninguém senão Jesus me ouviu! E não sou eu mulher?

Dentre os diversos argumentos masculinistas, alegando que era ridículo que as mulheres desejassem votar por — supostamente — dependerem dos homens, Truth demonstrou que tais alegações não podiam caracterizar mulheres como ela, as operárias, as escravas e trabalhadoras do campo.

A professora, filósofa a ativista Angela Davis diz em sua obra Mulheres, Raça e Classe que, havia uma construção daquilo que se esperava de um comportamento feminino, como a fragilidade, relegando-as ao espaço privado, à maternidade e ao trabalho doméstico.

Ora, se ser mulher significava tudo isso, as mulheres negras e as operárias pobres, que eram massa expressiva de trabalho nos EUA, nunca foram mulheres porque jamais foram consideradas frágeis por seus algozes ou deixaram de trabalhar.

Projeções sobre o gênero não são simples, muito menos estáveis. O gênero existe e se constrói de acordo com cada momento histórico. Se estamos num mundo onde ser mulher branca carrega consigo privilégios próprios de sua cor e, portanto, as difere das demais, fica evidente que a categoria mulher é insuficiente.

Foto: Acervo UH/Folhapress. Editora Malê/Divulgação

Carolina Maria de Jesus é o retrato brasileiro da mulher negra, periférica, mãe, migrante e miserável. Para quem ainda não teve o privilégio de ler sua obra mais conhecida Quarto de Despejo: diário de uma favelada (1960) fica aqui a indicação dessa obra/diário que é por muitos desconsiderada em sua potência e valor literário.

Residente da primeira grande favela de São Paulo, a Canindé, Carolina era catadora de papelão e mãe solo de três filhos. Em meio ao lixo, à falta de saneamento básico, à fome e à violência, não trabalhar nunca foi uma opção. Vivendo sozinha com seus filhos, lidando com as dores de ser negra e o medo de qualquer envolvimento amoroso, a forma como lidou com sua feminilidade decerto não foi nada privilegiada.

“[…] o pobre não repousa. Não tem o privilegio de gosar descanço.” (A frase respeita a escrita da autora).

No dia 16 de julho de 1955, Carolina de Jesus levantou-se indisposta com sinais de gripe, cuidou dos filhos, trabalhou para comprar mantimentos para o almoço e, em seguida, foi tentar a sorte de encontrar bastante papel para vender.

Foto: Victor Moriyama/The New York Times

Como não citar Preta Rara? Rapper, negra, historiadora e influenciadora digital, em 2016 deu início ao projeto que originou a obra Eu Empregada Doméstica. Preta é ex-empregada doméstica e em suas redes sociais lançou espaço para que mais mulheres pudessem falar ou denunciar suas vivências. A obra e os relatos que apresenta evidenciam uma estrutura significativamente racista de uma cultura escravista onde o lugar da empregada tem gênero e cor específicos. A síntese dessas relações é expressa quando a autora diz:

“a senzala moderna é o quartinho da empregada”.

Não obstante, dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) de 2019 — apontam para uma maioria de mulheres negras com baixa escolarização ocupando cargos de trabalho doméstico. As funções da casa e da cozinha, antes das escravizadas, hoje permanecem sendo executadas pelo contingente de mesma raça e gênero.

Ao mesmo tempo que percebemos um crescente discurso de emancipação da mulher e dos espaços que podem ocupar, devemos nos perguntar: as estruturas sobre as quais está alicerçado o Brasil nos permitem estar onde quisermos de fato? Há uma fragilidade no ser mulher, mas esta fragilidade não é senão o resultado dos anos de colonialismo, de escravidão negra e indígena, de tecnologias e técnicas modernas de controle para que essas estruturas mantenham-se coerentes aos interesses dominantes.

É preciso, no entanto, (des)empoderar o poder e destruir bases consolidadas que normalizam a baixa escolaridade negra, trabalhos precarizados, o encarceramento, a marginalização e a lógica da escravidão. Se lugar de mulher é onde ela quiser, seria preciso primeiro abolir a universalidade da categoria!

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Thays Moreira
Revista Brado

Mulher negra, historiadora, especializada em Psicopedagogia Clínica e Institucional. Raça, Gênero, Direitos Reprodutivos e Sexualidade. Bem Vindes!