Casamento: uma instituição que beneficia, sobretudo, os homens

Originado como um tratado jurídico e econômico, o matrimônio segue como um mecanismo que perpetua o patriarcado

gabriela brito
Revista Brado
8 min readAug 4, 2020

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Na série fictícia Game of Thrones, que se passa em um contexto socioeconômico equivalente à idade média, casamentos eram arranjados com o objetivo de unir casas, patrimônios e se fortalecer em contextos de guerra. Foto: Reprodução/Game of Thrones/HBO

A romântica ideia que permeia as meninas desde a primeira infância é o de crescer, se apaixonar — por alguém do sexo oposto — , realizar uma bela cerimônia e viver juntos para sempre. Tal roteiro é tido como certo e inabalável no imaginário social e acomete o público feminino independente de classe ou raça. Se cozinhamos bem, é comum escutar: “já pode casar!”. Se estamos envelhecendo sem um companheiro, “tá ficando pra titia!”. Para nós, vende-se que o casamento é o sonho, o objetivo final, o ápice da vida.

Os produtos midiáticos direcionados a nós — filmes, livros, séries e propagandas — quase sempre dão ênfase no amor, mesmo os direcionados ao público infantil. Ainda que a protagonista feminina seja forte, determinada e talentosa, é muito provável que o seu final feliz esteja vinculado às suas conquistas amorosas. O homem, por outro lado, não recebe tanto incentivo para aderir ao matrimônio. Geralmente, os produtos direcionados a eles abordam temas como esporte, máfia, aventura e os relacionamentos são parte pouco importante da história, quando não são puramente sexuais.

Quanto aos comentários sugestivos, os homens também não ficam livres, mas, no caso, o viés é outro. Quem nunca ouviu aquela famosa brincadeira direcionada ao colega que começou a namorar: “Ah, mais um guerreiro abatido!”. Se para as mulheres o casamento é um sonho, para a classe masculina é tida como um cárcere.

Nesse sentido, me indago: se o casamento é, de fato, um grande sacrifício para os homens e uma benção para as mulheres, por que será que precisa-se de tantos incentivos para que a classe feminina busque incansavelmente por um matrimônio? Será que, de fato, somos nós quem nos beneficiamos?

Historicamente, na nossa civilização, o casamento surge junto com a noção de propriedade privada. Tratava-se de um explícito contrato jurídico com o objetivo de transmitir bens e manter o poder familiar — em um contexto em que o sistema feudal era o vigente.

Afinal, toda a ideia de construção de gênero da época colocava a mulher como incapaz de administrar terras ou fazer negócios. Essas eram tarefas destinadas unicamente aos homens. Entretanto, havia algumas demandas: precisava-se de herdeiros e de fazer com que as filhas mulheres fossem úteis de alguma forma.

“Destronada pelo advento da propriedade privada, é a ela que o destino da mulher permanece ligado durante os séculos: em grande parte, sua história confunde-se com a história da herança” — Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo

Eis que surge, então, o casamento como a possibilidade de unir famílias, fundir propriedades, promover a diplomacia e expandir territórios. E nesse contrato, as mulheres não eram mais do que moeda de troca. Para levar a terra, leva-se junto a mulher. As mulheres não só não tinham o direito à propriedade, como também eram enxergadas como uma.

“Se ela fosse herdeira, transmitiria as riquezas da família paterna à do marido. […] Mas, inversamente, pelo fato de nada possuir, a mulher não é elevada à dignidade de pessoa; ela própria faz parte do patrimônio do homem, primeiramente do pai e em seguida do marido” — Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo

Consequentemente, essa realidade impôs papéis específicos às mulheres. Elas deveriam permanecer somente no campo privado, tendo sua força de trabalho explorada — cozinhando, cuidando da casa e dos filhos -, enquanto o campo público era ocupado pelos homens, que dominavam os setores políticos e econômicos. Além disso, explorava-se também as capacidades reprodutivas da mulher, que possuía a obrigação de gerar herdeiros homens — o infanticídio dos bebês do sexo feminino era comum.

Vale destacar que o homem se beneficiava também da obrigação que a mulher tinha de satisfazê-lo sexualmente. Assim, ele não precisaria mais buscar ou pagar por sexo. Aliás, dos homens não era exigida nem mesmo uma fidelidade restrita. O adultério não era visto com maus olhos. Por outro lado, a infidelidade da mulher, enquanto propriedade de seu marido, era considerado crime de alta traição. Afinal, era preciso ter a absoluta certeza de quem eram os seus filhos, visto que seriam os herdeiros de seu marido. Um bastardo, por parte dela, seria inadmissível.

“Como é sua propriedade, […] é natural que o homem possa ter tantas mulheres quantas lhe apraza. […] Em compensação, a mulher é adstrita a uma castidade rigorosa” — Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo

Mulher é punida na Mongólia por adultério. A foto foi tirada em 1913 pelo fotógrafo francês Albert Kahn. A punição consistia em trancar a pessoa em uma caixa de madeira, e deixá-la sofrendo até a morte. A foto foi primeiro publicada na edição da National Geographic em 1922. Foto: Rare Historical Photos

Entretanto, com a modernidade, percebe-se que há a necessidade de convencer a classe feminina de que é preciso permanecer nessa lógica de desigualdade de gênero — e talvez haja até hoje. Era preciso construir, historicamente, a ficção do amor romântico. Nesse contexto, a Igreja teve um importante papel, pois foi ela a maior responsável pela construção do afeto dentro dessa estrutura socioeconômica. Surge, então, a narrativa moralizada de família enquanto instituição: caso você ame muito uma pessoa, deve dividir a vida sobre o mesmo teto, até que a morte os separe. Se relacionar sexualmente apenas após o casamento, pois deve ser feito apenas para gerar filhos — e, claro, satisfazer o marido.

Logo, faz-se importante ter clara a concepção de que o casamento surge como um contrato social puramente pragmático, articulado entre Igreja e Estado e revestido como amor romântico na modernidade, com o objetivo de transmitir bens, de homens para homens, e explorar a capacidade reprodutiva e o trabalho doméstico das mulheres.

Mas as coisas mudaram, certo?

De fato, é possível afirmar que o matrimônio não é mais tido como um contrato financeiro entre pai e noivo — ao menos na nossa cultura, visto que o casamento arranjado ainda é comum em alguns países — , mas é inegável que ainda há resquícios dessa relação econômica.

A própria cerimônia tradicional, onde o pai leva a noiva ao altar e a entrega, vestida de branco (virgindade), ao noivo, é um exemplo de como carregamos alguns símbolos do casamento enquanto um tratado econômico. Outro símbolo é a tradição de repassar os sobrenomes paternos. Apesar de atualmente não haver mais a obrigação, até poucos anos, o último nome, o mais importante e o que era passado adiante, era sempre o da família paterna.

Até mesmo a nossa linguagem não está isenta de tais resquícios. Perceba: patrimônio se refere a bens de família, herança, enquanto matrimônio significa casamento. No final, um é consequência do outro.

Além de símbolos, também é possível identificar alguns resquícios culturais. Um muito evidente é o sentimento de posse que homens possuem por suas parceiras e até pelas ex-companheiras. Observo isso, inclusive, no programa De Férias com o Ex, um reality show da MTV. É nítido como os homens possuem um sentimento de posse muito maior do que as mulheres, chegando a gerar grandes confusões — que é o que traz audiência ao programa. Mesmo suas ex-namoradas são consideradas suas propriedades, que devem ser respeitadas pelos outros homens.

Outro resquício que observo no comportamento popular é no que tange à infidelidade. Quando se descobre uma traição por parte de uma mulher, ela é bem mais criticada do que quando o mesmo ocorre com um homem. Na verdade, tenta-se até justificar a atitude com frases como “quando o homem não encontra em casa, ele procura na rua”. A infidelidade masculina é totalmente normalizada.

O problema maior é que tais símbolos e comportamentos não param por aí. Infelizmente, tais concepções culturais também se materializam nas violências de gênero. Segundo o Atlas da Violência de 2019, as violências sexuais praticadas por cônjuge ou companheiro representam 13,15% dos crimes de estupro praticados no Brasil. Além disso, a não aceitação da separação está entre os principais motivos de feminicídio.

E como se não bastasse, outro dado grotesco é que até o ano de 2005 era possível ter a pena de estupro anulada caso o estuprador se casasse com a vítima. A mensagem era clara: o crime hediondo deixava de ser considerado um delito se cometido contra a sua esposa, ou seja, a sua propriedade. É a clara naturalização do estupro marital.

Abordei um pouco sobre isso na minha coluna anterior¹, mas basicamente essa concepção da esposa como propriedade do marido, que possui a obrigação de o servir e o satisfazer sexualmente, abre precedentes para os tantos casos de estupro conjugal/marital — que, por sinal, são subnotificados, já que a própria vítima entende que possui esse débito. Essa ideia também é a responsável pela divisão sexual do trabalho, que também abordei em outra coluna² e que submete a classe feminina a uma pesada carga de trabalho, entre o serviço doméstico e o formal.

Tendo em vista como tais valores antigos corroboram para violências físicas e simbólicas que permeiam a nossa sociedade até os dias atuais, como estupro conjugal, feminicídio e sobrecarga de trabalho feminina, vale a reflexão: seria coincidência que os produtos midiáticos e a sociedade como um todo produzam tantos incentivos para que nós, mulheres, acatemos essa instituição que pouco nos beneficia?

Por que é entendível que o casamento é o grande sonho das mulheres se, ao chegar do trabalho, quem recebe a casa limpa, os filhos criados e sexo à noite são os homens?

Argumenta-se: “Ah, mas eles trabalham!”. Ora, coloque na ponta do lápis quanto custa uma empregada doméstica, uma babá e uma prostituta. O casamento ainda é uma instituição econômica e um ótimo negócio para os homens. Isso tudo sem contar que as mulheres também integram o mercado de trabalho, no caso, ganhando menos pelas mesmas horas, e com a obrigação extra de chegar em casa e realizar um trabalho voluntário.

A quem interessa a manutenção de um sistema que mantém mulheres em casa, obedecendo os seus maridos, e longe do domínio financeiro, científico e político?

Perceba, este texto não visa se posicionar contrariamente às pessoas que se amam e decidem dividir o mesmo teto. Penso que quaisquer pessoas que queiram morar juntas o devem, sejam amigas, namoradas ou parentes. A questão é a ideia romantizada e cristianizada de como casamento deve ser: com a mulher reduzida a um mero objeto sexual e servil, que deve acatar todas as vontades de seus maridos.

Na verdade, justamente por existir relacionamentos heterossexuais igualitários que fogem dessa realidade é que devemos ensinar nossas meninas a serem mais exigentes com a escolha de seus parceiros, isso se de fato o casamento for uma vontade autêntica.

Além disso, obviamente, sou favorável a casamentos constituídos por pessoas do mesmo sexo, e vejo que que essa é mais uma evidência que deve nos fazer refletir: por que os casamentos homossexuais são recriminados pela Igreja e, até pouco tempo, eram invisibilizados pelo Estado? Ora, o objetivo do matrimônio não visa unir duas pessoas que se amam dentro do mesmo lar?

Pois bem: é necessário manter a lógica da desigualdade de gênero. Aqui, a heterossexualidade compulsória também se faz presente.

O ponto é que precisamos refletir sobre essas instituições historicamente bem estabelecidas, sobretudo quando se trata de uma instituição estruturada na objetificação e na exploração econômica feminina. O matrimônio pode existir, mas não deve ser assim. Tampouco deve ser o sonho de nossas crianças.

Por mais meninas almejando por grandes aventuras do que por príncipes encantados.

Texto escrito baseado em informações contidas no primeiro volume da obra “O Segundo Sexo”, mais especificamente no capítulo “História”, escrita pela filósofa Simone de Beauvoir.

¹ Minha coluna anterior para a Revista Brado, “A objetificação do corpo feminino não se limita às propagandas de cerveja”, que discorre sobre as graves consequências da banalização da imagem da mulher. Caso se interesse pela leitura, clique aqui.

² Minha coluna “Sobrecarga de trabalho feminina: precisamos equacionar a divisão das tarefas domésticas”, também na Revista Brado, aborda a divisão sexual do trabalho. Clique aqui para acessar.

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