Cultura da pedofilia: a erotização de corpos infantis não é um desvio

Ainda que desprezado pela sociedade, o comportamento pedófilo é sistêmico

gabriela brito
Revista Brado
5 min readMay 15, 2021

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Em “Lolita”, polêmica obra de Vladimir Nabokov, o homem de meia-idade Humberto se vê obcecado por Lolita, uma menina de 12 anos. Nas diferentes interpretações, há quem interprete o texto como romantização da pedofilia, mas outros buscam compreender o caráter de denúncia presente na narrativa de Nabokov. Nos anos 60, o diretor Stanley Kubrick adaptou o livro para as telonas. Foto: Reprodução/Lolita (1962)

Desde muito cedo, me recordo de ter a roupa veementemente regulada pela mãe. Bermudas curtas passaram, de repente, a ser algo restrito para alguns ambientes e o uso de saias só era permitido com algum short por baixo. Não era algo comum, antes, mas passou a ser logo que passei da menarca, perto dos dez anos. Me aborreceu em um primeiro momento, mas não demorou muito para entender que ela o fazia não por moralismo, como cheguei a pensar, mas para me poupar de olhares, frases e assobios de homens adultos e idosos.

Ao longo de anos, acreditei que isso acontecia principalmente por ter sido considerada “muito desenvolvida para a idade”, e que parte da culpa disso eram os quadris um pouco mais largos, mas o que observo hoje é que muitas colegas relatam a mesma situação e, na verdade, ao olhar uma fotografia da época, percebo que eu parecia mesmo o que era: uma menina de dez anos.

O estupro de vulneráveis é um crime constantemente desprezado pelas massas, pela mídia e seu absurdo é um consenso. Mas, em contradição, o que explica que as 320 crianças e adolescentes que são vítimas de abuso a cada 24 horas no Brasil sigam como uma realidade sistêmica?

A atriz e produtora Paula Lavigne confirmou que perdeu a virgindade aos 13 anos com Caetano Veloso, em seu aniversário de 40. Supõe-se que Paula teria “dado” a virgindade de presente. Apesar de muitos alegarem que, na época, essa realidade não era tão problematizada, vale destacar que a relação só foi assumida após Paula completar 18, o que sugere que Caetano sabia que não seria socialmente aceito com uma menor de idade. Foto: Folhapress

É preciso reconhecer que em nossa sociedade existem condicionamentos culturais que geram tais violências. É o que vertentes do feminismo contemporâneo definem como “cultura da pedofilia”. Ao abordar o assunto, é comum que haja polêmicas e que não-estudiosos do tema se ofendam com “cultura” e “pedofilia” na mesma frase. Em um primeiro momento, parece mesmo impróprio alegar que comportamentos pedófilos sejam incentivados pela nossa cultura, mas tal reação se deve justamente por estarmos mergulhados nela.

Não à toa, países como a Índia mantêm o casamento infantil como uma prática cultural normalizada, ainda que legalmente proibida — e, diga-se de passagem, nossa realidade não é distante disso. Até o final do século XIX, o consentimento da prática sexualmente era de 10 a 12 anos em países da Europa e da América do Norte. Isso significa que, em todo o globo, a discussão sobre pedofilia é recente, e para a superarmos devemos ultrapassar estruturas e mentalidades sociais antigas.

Por isso, caro leitor, suporei que concordamos e admitimos, eu e você, que somos seres sociais e que nossos desejos sexuais possuem influência cultural.

Considerando isso, não surpreende que seguimos perpetuando concepções do senso comum que corroboram para a manutenção dessa conjuntura. Uma delas, por exemplo, é a adultização de meninas. Não é raro quem acredite que “a menina se torna mulher” após a primeira menstruação e, como tal, deve suprir as expectativas de gênero. Das mulheres, exige-se mais cedo que sejam úteis nas tarefas domésticas, que sejam maduras e educadas. Tampouco é incomum ouvir comentários como “meninas amadurecem mais cedo que os meninos” ou que pré-adolescentes que não atendam aos pré-requisitos da feminilidade — que brincam, se divertem e praticam esportes não pela aparência, mas por prazer — sejam chamadas de “molecas”, referenciando a condição de menino.

Consequentemente, atrelada à adultização de meninas, está a responsabilização excessiva. Em nossa sociedade — que também possui condicionamentos que corroboram para a cultura do estupro — não é incomum que mulheres sejam responsabilizadas — e até culpabilizadas — pelo que as acomete, incluindo as violências sofridas, seja pela roupa, pelo lugar que frequenta ou o que for. Ainda há quem interprete o comportamento fora da norma como consentimento, e não é diferente com uma menina. Quando alguma menor de idade aparece grávida, por exemplo, há quem defenda que ela assuma as responsabilidades, pois “já sabia o que estava fazendo”.

Ademais, essa adultização de meninas gera a hiperssexualização precoce, na medida em que essa é a condição que a mulher adulta ocupa na sociedade. Veja, se a mulher está imersa em uma cultura de objetificação e hiperssexualização de seu corpo, adultizar meninas é sexualizá-las e instigar a cultura da pedofilia.

Em 2010, a revista Vogue causou polêmica ao retratar a modelo Thylane Lena-Rose Blondeau, aos 10 anos, como uma mulher adulta. Maquiada e em poses sugestivas, a criança foi representada de forma erotizada — como mulheres costumam ser. Foto: Vogue/Reprodução

Em contradição a tal adultização, por outro lado, podemos apontar a infantilização de mulheres adultas, de modo que é normalizada a relação entre a aparência ideal da mulher a símbolos relacionados à juventude. Perceba: ao imaginar uma mulher que atende as expectativas de gênero, constrói-se na mente uma mulher delicada, pequena, sem rugas (e demais marcas do tempo), sem pelos e obediente. E, novamente, em um contexto de hiperssexualização, é de se imaginar que tais símbolos sejam sexualizados. Não coincidentemente, o termo “novinha’’ é o mais buscado em sites pornográficos, além de fantasias como pai-filha e relações professor-estudante.

É inegável que existe uma tendência cultural tanto à hiperssexualização precoce de crianças quanto à infantilização da mulher adulta para o prazer e consumo masculino e, nesse sentido, não é possível dizer que as violências sejam inesperadas.

Com este texto, o que proponho não é o julgamento individual, mas a reflexão sobre a definição de pedofilia, proposta por órgãos de saúde como uma doença e reforçada pela mídia como algo que é exercido por monstros encapuzados em becos escuros, quando são crimes que estão sendo cometidos em casa, por tios, avôs, pais e irmãos.

Não dá para tratar o que é normalizado como um transtorno. Para isso, tais atitudes deveriam ser um desvio, e, pelo contrário, já são esperadas. Eram homens normais os que não viam problema em me “cantar” nas ruas. Era um comportamento esperado pela minha mãe. Se queremos que essa realidade mude, é preciso a reconhecer como de fato é.

Limitar as ações de combate à punição de agressores — quando há — não é suficiente. Precisamos reavaliar cada atitude que possa nutrir tais violências. Precisamos estar atentos e buscar entender o que perpetua essa realidade — e se corroboramos com ela.

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Este texto é parte da campanha de combate ao abuso e exploração de crianças e adolescentes desenvolvida pela Revista Brado durante o Maio Laranja.

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