Precisamos refletir sobre o feminismo liberal

Mylena Ferro
Revista Brado
Published in
4 min readAug 14, 2020

Será o feminismo que se alia ao capitalismo e prega o individualismo de fato libertador de opressões?

Imagem: Reprodução

Volta e meia se vê pelas redes sociais, em grupos específicos ou não, debates contrários ou defensores do feminismo liberal. Muitas meninas e mulheres, em especial as que estão entrando no estudo feminista por agora, não entendem como ''irmãs de luta" podem se opor a um movimento que, assim como sugere o nome, prega a liberdade. Mas será que é assim mesmo?

Antes de tudo, precisamos esclarecer de onde vem o termo “feminismo liberal”. Ao contrário do que se pensa, o liberal neste caso não é o oposto de conservador. É liberal por se referir ao liberalismo, doutrina socioeconômica que, de modo resumido, defende os direitos da burguesia, o livre comércio, o Estado mínimo e a liberdade individual. Visa universalizar os direitos, mas a partir do pressuposto de que estamos todos na mesma linha de partida, desconsiderando as opressões de classe, gênero e raça, por exemplo, que condicionam nossa vivência e existência. Ajudou sim em algumas pautas, como na questão do voto feminino, mas, por ser uma doutrina criada por homens brancos e burgueses, não propõe soluções ou questiona problemas de grupos que fujam do padrão masculino-branco-burguês.

Sabendo desse conceito, como pode, então, um feminismo ser aliado à burguesia se o capitalismo é um dos maiores — se não o maior — pilares para a opressão de gênero? Como pode um movimento social e político que visa libertar as mulheres dessa opressão em sua totalidade, se preocupar apenas com a liberdade individual e não coletiva?

O feminismo que não é, em primeira análise, incômodo, que não faz pensar ou questionar a nossa realidade, não está exercendo seu papel de movimento sociopolítico. A opressão de gênero pesa sobre nós mulheres desde o nascimento: somos nascidas e criadas numa sociedade patriarcal que nos ensina como ser, como se comportar, como se vestir, como se relacionar e até como pensar. Essas imposições nos são naturalizadas, portanto não tem como ser libertador fazermos tudo que quisermos sem que se questione esse “querer” antes.

Querer ser livre é também querer livres os outros. (Simone de Beauvoir)

O feminismo liberal peca, em especial, ao desconsiderar que a nossa luta deve ser muito maior do que a busca pela libertação individual: precisamos de uma libertação total e coletiva — começa com o conhecimento e consciência de cada uma de nós, é verdade, mas não pode nem deve parar aí. Até porque essa ideia de liberdade individual da mulher dentro de um sistema que ainda é opressor com sua classe não passa de uma armadilha patriarcal e capitalista que tenta se apropriar até — e principalmente — das lutas que os criticam e enfrentam.

Esse processo, necessário e fundamental ao feminismo, é mesmo penoso, difícil e dolorido, afinal, como já disse, somos moldadas e podadas desde bebês, ensinadas a ver a opressão com naturalidade. Mas não se pode em um movimento sociopolítico ignorar uma classe em detrimento da individualidade. Feminismo não se trata de um lifestyle.

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É importante entender que quando falo em uma luta coletiva não estou de maneira alguma pressupondo que todas as vivências são iguais ou que mulheres são homogêneas e passam pelas mesmas coisas das mesmas formas. Precisamos considerar sempre que, mesmo dentro da opressão de gênero, estamos em pontos de partida diferentes. Mulheres negras, LGBTs, pobres, sofrem opressões somadas e intensificadas. E mesmo dentro desses grupos, a vivência de cada mulher é singular e deve ser considerada. Mas sabemos também que existe uma linha central, em meio às linhas de classe, sexualidade, raça e nacionalidade, que atravessa todas nós: a opressão exercida sobre as pessoas do sexo feminino. E esse é o elo principal que junta os feminismos e deve ser consciência base da coletividade entre mulheres — sempre lembrando de exercer os recortes devidos -, para que assim, e somente assim, possamos de fato lutar contra a supremacia e exercício de poder masculino.

Dito isso, também é importante, no entanto, lembrar que o feminismo liberal exerce um papel importante: por sugerir soluções mais rápidas e apontar raízes mais rasas, essa corrente é, normalmente, a porta de entrada para meninas no estudo feminista. É importante que não julguemos as mulheres que se sentem mais confortáveis nessa corrente, muito pelo contrário: devemos, enquanto coletividade, estar atentas e acolhê-las, especialmente dentro das atrativas armadilhas de falsa liberdade que nos são propostas. Ninguém nasce sabendo e entendendo profundamente as raízes da nossa opressão — não podemos, portanto, exigir essa compreensão imediata de todas. Ao contrário do que se faz muitas vezes, precisamos sim ser didáticas, em especial e sobretudo umas com as outras — afinal, não há liberdade se ela não é coletiva.

Lembremos: Não é possível confiar, defender ou potencializar um movimento que se diz feminista mas anda de mãos dadas com o capitalismo e com a individualização da luta, que fecha os olhos para as opressões de raça, sexualidade e classe e que não incomoda, não faz pensar e, pior de tudo, agrada o opressor.

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