Não existem cidades inclusivas e integradas sem fomento à cultura

Mylena Ferro
Revista Brado
Published in
3 min readSep 24, 2021
Imagem: Reprodução do documentário A Batalha do Passinho (2012), de Emílio Domingues

Ao estudar os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável propostos pela Agenda 2030 da ONU, senti certa dificuldade em identificar algum que estivesse ligado diretamente à cultura. Embora continue achando que ao elaborá-los não foi dada a devida importância a um dos agentes mais importantes da sociedade, notei algo óbvio: não existe uma cidade inclusiva e centros integrados à periferia, como é proposto o item 11 da lista, sem o fomento efetivo à cultura fora dos grandes centros.

A cultura, muito mais do que entretenimento, é um agente de transformação social — que falha, no entanto, quando não é democratizada e sua produção e consumo concentram-se apenas em bairros nobres e centros. Não faz sentido que haja produção de bens e valores culturais sem que a classe trabalhadora, pobre e periférica tenha acesso a eles. Não faz sentido que os empresários que dizem querer promover uma sociedade mais justa — que fazem propaganda falando sobre, que postam nas redes sociais e produzem um discurso muito bonito e quase acreditável — sejam os mesmos que continuam atrapalhando e impedindo as negociações coletivas de incluir o Vale Cultura como um benefício de direito dos trabalhadores.

Não há de se romantizar a mulher que, mesmo entre tarefas com filhos, casa e trabalho, atravessa a cidade para conseguir assistir a um filme ou peça, tudo em nome do amor à arte. Ou o garoto que não consegue fazer aula de piano porque não pode pagar e os únicos gratuitos são longe e em horários impossíveis para quem precisa estudar, cuidar dos irmãos enquanto os pais trabalham e não pode voltar depois das 22h porque preto e pobre andando no centro a essa hora — e a qualquer outra — pode ser parado ou até morto por policial porque sua existência é suspeita. Ou a menina que precisa passar duas horas dentro do ônibus para chegar a uma biblioteca e conseguir pegar um livro. Os que desistem de fazer teatro, mesmo que em escolas de arte municipais, estaduais ou federais, porque “não é coisa pra gente pobre”.

Incentivar a cultura não é apenas torná-la gratuita: é entender as necessidades do círculo privilegiado das cidades, é democratizá-la no sentido mais amplo e simples da palavra: torná-la disponível para todos, feita para e por quem quiser.

Há de se lembrar que cabe também (mas não só) à atividade cultural a integração e ocupação de espaços públicos que não são aproveitados pela população no geral — não à toa esses lugares são chamados em algumas cidades de “ponto morto” —, justamente por falta de investimento e atenção. Em Vitória (ES), exemplos desta ocupação são o Viradão Cultural e o Festival de Cinema de Vitória, que movimentam o centro histórico da cidade — normalmente não tão frequentado assim —, e além de serem gratuitos, verdadeiramente acessíveis e diversos, também geram empregos, ainda que temporário, para artistas locais, ou mesmo aumento de renda para vendedores ambulantes, bares e restaurantes — até porque se não há cidade inclusiva sem cultura, tampouco há sem renda, moradia e segurança alimentar.

Cultura traz, ou devolve, vida. Não há como se falar em cidades inclusivas enquanto não entendermos que a arte e a cultura também são peças fundamentais.

“ A gente não quer só comida

A gente quer comida, diversão e arte

A gente não quer só comida

A gente quer saída

Para qualquer parte…”

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