Não existem cidades inclusivas e integradas sem fomento à cultura
Ao estudar os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável propostos pela Agenda 2030 da ONU, senti certa dificuldade em identificar algum que estivesse ligado diretamente à cultura. Embora continue achando que ao elaborá-los não foi dada a devida importância a um dos agentes mais importantes da sociedade, notei algo óbvio: não existe uma cidade inclusiva e centros integrados à periferia, como é proposto o item 11 da lista, sem o fomento efetivo à cultura fora dos grandes centros.
A cultura, muito mais do que entretenimento, é um agente de transformação social — que falha, no entanto, quando não é democratizada e sua produção e consumo concentram-se apenas em bairros nobres e centros. Não faz sentido que haja produção de bens e valores culturais sem que a classe trabalhadora, pobre e periférica tenha acesso a eles. Não faz sentido que os empresários que dizem querer promover uma sociedade mais justa — que fazem propaganda falando sobre, que postam nas redes sociais e produzem um discurso muito bonito e quase acreditável — sejam os mesmos que continuam atrapalhando e impedindo as negociações coletivas de incluir o Vale Cultura como um benefício de direito dos trabalhadores.
Não há de se romantizar a mulher que, mesmo entre tarefas com filhos, casa e trabalho, atravessa a cidade para conseguir assistir a um filme ou peça, tudo em nome do amor à arte. Ou o garoto que não consegue fazer aula de piano porque não pode pagar e os únicos gratuitos são longe e em horários impossíveis para quem precisa estudar, cuidar dos irmãos enquanto os pais trabalham e não pode voltar depois das 22h porque preto e pobre andando no centro a essa hora — e a qualquer outra — pode ser parado ou até morto por policial porque sua existência é suspeita. Ou a menina que precisa passar duas horas dentro do ônibus para chegar a uma biblioteca e conseguir pegar um livro. Os que desistem de fazer teatro, mesmo que em escolas de arte municipais, estaduais ou federais, porque “não é coisa pra gente pobre”.
Incentivar a cultura não é apenas torná-la gratuita: é entender as necessidades do círculo privilegiado das cidades, é democratizá-la no sentido mais amplo e simples da palavra: torná-la disponível para todos, feita para e por quem quiser.
Há de se lembrar que cabe também (mas não só) à atividade cultural a integração e ocupação de espaços públicos que não são aproveitados pela população no geral — não à toa esses lugares são chamados em algumas cidades de “ponto morto” —, justamente por falta de investimento e atenção. Em Vitória (ES), exemplos desta ocupação são o Viradão Cultural e o Festival de Cinema de Vitória, que movimentam o centro histórico da cidade — normalmente não tão frequentado assim —, e além de serem gratuitos, verdadeiramente acessíveis e diversos, também geram empregos, ainda que temporário, para artistas locais, ou mesmo aumento de renda para vendedores ambulantes, bares e restaurantes — até porque se não há cidade inclusiva sem cultura, tampouco há sem renda, moradia e segurança alimentar.
Cultura traz, ou devolve, vida. Não há como se falar em cidades inclusivas enquanto não entendermos que a arte e a cultura também são peças fundamentais.
“ A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída
Para qualquer parte…”
Este texto faz parte de uma campanha da Revista Brado sobre a Agenda 2030:
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