Não se faz mais música como antigamente?

O saudosismo da juventude de outras décadas pode significar muito além de somente boas lembranças

Samara Elisa
Revista Brado
6 min readApr 30, 2021

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Uma polêmica envolvendo o produtor musical Rick Bonadio chamou a atenção do Twitter no dia do Grammy. A cantora Cardi B se apresentou com o remix em versão funk de sua música WAP, feita pelo DJ Pedro Sampaio. Durante a apresentação, Rick estava fazendo comentários sobre a premiação e criticou a apresentação da cantora:

Reprodução/Twitter

É importante ressaltar que discursos como o de Bonadio podem ter nele mascarado um preconceito musical contra as músicas populares produzidas atualmente. Mesmo sendo um produtor musical que trabalha no ramo há décadas, Rick ainda carrega consigo esse preconceito disfarçado de qualidade musical. Enquanto no exterior o funk é valorizado, sendo levado até para uma das maiores premiações de música popular do mundo, no próprio país em que a música é produzida comentários como esse são frequentes. E o funk não é exceção: esse preconceito cultural é muito comum com produções vindas da periferia. Historicamente, o mesmo já aconteceu com o samba, por exemplo, que hoje é difundido na nossa cultura, sendo o nosso Carnaval um dos mais conhecidos e desejados do mundo.

Essa questão envolvendo o tweet do produtor faz parte de algo muito comum: não é estranho nos depararmos com alguém dizendo que “já não se faz mais música como na minha época, hoje em dia não tem nada que presta”. Ou então aqueles jovens em comentários de vídeos no YouTube que dizem: “Acho que nasci na década errada, música boa só tinha antigamente”. Quais motivos levam alguém a supervalorizar o passado dessa maneira em detrimento de toda a produção cultural que vem sendo realizada neste século?

Foto: Charl van Rooy / Unsplash

É curioso tentar entender por que mesmo com tantas novas produções artísticas e diversos novos meios de consumi-las ainda há quem diga que não há nada de bom nisso e tudo que foi realizado com qualidade veio de “sua época”. Esse apego com tudo que veio décadas atrás está muito ligado à memória afetiva de cada pessoa. Se pararmos para reparar, essas pessoas sempre se referem a “minha época” como sua juventude. É exatamente o momento em que estão construindo seus gostos e também é um momento em que se guarda muitas memórias positivas, muitas acompanhadas por músicas, filmes ou alguma outra forma de arte.

Duas pesquisas realizadas por plataformas de streaming de música retratam isso. A primeira, feita pela Deezer, com pessoas de quatro países incluindo o Brasil, mostrou que em média aos 27 anos nós paramos de conhecer novas músicas. Após essa idade, os entrevistados relatam que ouvem somente músicas que já conhecem ou gostam, sem procurar novas faixas. Já a segunda pesquisa, feita somente nos Estados Unidos com dados do Spotify, mostra que a partir dos 30 anos o público da plataforma diminui o consumo de músicas presentes nos tópicos de sucesso e passam a ouvir aquilo que fazia sucesso na rádio anos atrás, diferente dos jovens a partir de 14 anos, que ainda estão construindo sua identidade e tendem a ouvir artistas que estão bombando no momento.

Claramente, uma pessoa que já viveu mais de 30 anos se deparou com diversas músicas e artes da “sua época” que não gostava ou achava ruim, mas o que acontece é que essa parte da memória acaba sendo excluída. Nossa tendência é sempre lembrar com muito mais carinho daquilo que marcou um momento especial do que aquilo que nos desagradou.

O mesmo acontece com as músicas que marcaram uma época. A sociedade e os meios de comunicação de massa acabam filtrando e estabelecendo determinadas músicas que representam uma geração. É óbvio que diversas outras foram lançadas e estiveram no topo do sucesso, mas acabam sendo apagadas da memória conforme o tempo passa. Nossa memória é seletiva e construída por nossas experiências ao longo de nossa vida, e por isso não devemos confundir o que está na nossa memória com o que de fato aconteceu na história.

Outro fator que podemos citar é a sensação de pertencimento que a música tem poder de criar em nós. A pesquisadora Ananda Vargas, em matéria da plataforma Gente, afirma: “Quem diz algo como ‘no meu tempo’ não se sente fazendo parte do tempo atual, mas de um que já passou. Canções da juventude marcam o último momento em que esse sujeito se sentiu contemporâneo”. Sendo assim, eles retomam essas lembranças de juventude, se sentindo pertencentes ao grupo de sua geração.

A mesma lógica pode ser aplicada para os jovens tentando se encaixar em algum grupo de fãs. Durante a adolescência, enquanto formamos nossa personalidade, a música tem um papel essencial. Nós coletamos referências diversas, conhecemos pessoas com gostos parecidos e isso é muito importante enquanto tentamos formar nossa própria identidade. Muitos adolescentes dizem que só havia música boa antigamente por referência familiar, a primeira que temos. Mas assim que começamos a ter contato com pessoas fora dessa esfera, com as grandes mídias ou com a internet, descobrimos outros estilos com os quais nos identificamos e passamos por diversas fases, até chegar nesse amadurecimento, em que não procuramos mais nos encaixar somente em um gênero musical, mas na mistura de vários que fomos juntando ao longo desse trajeto.

No meio de todas essas lembranças e histórias, quem está sempre presente e possui um papel fundamental em moldar nossos gostos são os meios de comunicação de massa. Anos atrás mais restrita à TV e ao rádio, hoje podemos expandir essa descrição para os algoritmos das redes sociais. É fundamental nos questionarmos se o que nós gostamos realmente é fruto do nosso próprio gosto ou se é criado por algo além do nosso alcance.

É quase impossível dizer que não tivemos nossos gostos, modos de pensar e agir ou opiniões moldados por algum meio de comunicação, mas é sempre importante questionar o porquê disso tudo ao invés de somente receber de forma passiva. Tendo em mente que esses meios de comunicação são dominados por uma elite, não é de se espantar que seja difundida uma ideologia baseada no preconceito com músicas vindas da periferia, como o funk, citado acima. Mas é sempre algo suscetível de indignação e mudança.

Voltando para essa idealização do passado, um exemplo bem interessante de como a grande mídia atua para reproduzir esse pensamento de que “tudo era melhor antigamente” são as novelas e filmes de época. Nessas produções, é criado um mundo extremamente agradável de se viver, distorcendo o que ocorreu na realidade, porque, claro, elas são sempre contadas a partir do viés da classe dominante. Isso faz com que muitas pessoas desejem ter vivido naquela época, mesmo que se trate do Brasil Colonial, período em que existia escravidão, por exemplo. Se essas histórias fossem contadas pelas perspectivas dos povos explorados, talvez esse desejo imenso de viver no passado não fosse tão grande assim.

Cenas da novela de época Novo Mundo. Reprodução/TV Globo

É possível entender uma pessoa que busca refúgio no passado. A inconstância do presente e a incerteza do futuro fazem com que muitas pessoas prefiram o conforto do que já aconteceu, principalmente quando filtramos somente as coisas boas de lá. Mas não conseguir desapegar do que já se passou pode se tornar uma forma de alienação perigosa em que não nos damos abertura para conhecer novas formas de enxergar o que acontece na sociedade atual. Mesmo tendo nosso gosto amadurecido, sempre é possível dar uma nova chance ao desconhecido, e às vezes podemos nos surpreender positivamente.

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