O adeus ao poeta sutil

Morto aos 56 anos, cariaciquense Sérgio Blank é uma daquelas figuras que não devem ser esquecidas

Maria Fernanda Conti
Revista Brado
4 min readAug 9, 2020

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Blank faleceu um dia após completar um ano como imortal da Academia Espírito-Santense de Letras. Imagem: Claudio Postay

Conhecer o poeta Sérgio Blank provocava uma cascata de sentimentos em qualquer um que se arriscasse. Eu já era sua leitora desde 2015, mas o vi pela primeira vez só em 2018, na Biblioteca Pública do Espírito Santo (BPES), em Vitória. Era o lançamento de um livro, se eu não me engano. Sérgio usava um blusão azul, com aquelas calças nem caramelo nem laranja, sim um meio termo entre as duas cores. Esbanjava uns daqueles sorrisos tímidos, que só consegui identificar e amar meses depois.

Naquela época, eu trabalhava lá dentro, ajudando a produzir os eventos e fazendo cobertura jornalística. Então alguns dias depois daquele lançamento, num burburinho entre os funcionários, descobri que Blank era uma das maiores âncoras da BPES. Não só de lá, mas da cultura capixaba como um todo: por anos, ele trabalhou na parte técnica da Secult, movendo todos os pauzinhos possíveis para estimular a produção literária e audiovisual do estado.

Essa queda de braço perdeu ele assim que Blank foi diagnosticado com hepatite C, em 2013. Precisou se distanciar das atividades para cuidar da própria saúde. De lá pra cá, enfrentou também pneumonia, tuberculose, cirurgias no fêmur após um acidente doméstico e cirrose hepática. Esperou anos por um transplante de fígado, que não apareceu a tempo de seu falecimento, no dia 23 de julho deste ano.

Homenagem do cartunista Genildo ao nosso “imortal poeta”. Imagem: Reprodução/Genildo

Mas antes de conhecer todos esses problemas, pude ter contato com um homem que era pra lá de encantador. Fomos nos aproximando durante todo o ano, e preciso dizer que não conheci muitas pessoas tão gentis quanto Sérgio Blank. Nossa amizade nasceu de um jeito natural. Ficávamos horas conversando sobre coisas da vida, compartilhando angústias e ajudando um ao outro sempre que precisávamos. Às vezes, recebia uma ligação dele no meio do dia, pedindo dicas sobre como usar esta ou aquela rede social, num claro tom de ironia. Sua simplicidade era coisa de outro mundo.

A última tarde que passamos juntos foi na final do Slam interestadual, uma “batalha” microfonada de poesia com jovens de todo o estado. Sérgio foi chamado para participar como jurado e, lógico, topou na hora. Acompanhou, escutou e aplaudiu de perto os versos dessa nova geração de poetas capixabas. Dava para ver que ele ficou muito entusiasmado com o que viu, mesmo que os assuntos rasgados ali não pertencessem à sua realidade. Mas ele acreditava no poder das palavras, independentemente da classe social, raça ou gênero. Não é à toa que depositou 35 anos no ofício, cuja atuação também era de crítico literário, editor, oficineiro e organizador de eventos.

OPUSDAPESTE (“Pus”, 1987)
(solidão)

o maior espetáculo da terra
a minha tragédia
jaula de circo
uma grande cerca
acordo cedo com o fim
deixo de ser estrela
brilhe o segredo da rua
a chave da cidade
afinal fecha a grade
além disso
obriga a praga do dia e dia
não receie ir tão longe
ali onde o grito é o lance
a décima quinta linha

E como não falar sobre o que ele representou para a nossa literatura? “Estilo de ser assim, tão pouco” (1984), seu primeiro livro, foi publicado quando os escritores da literatura marginal brasileira já estavam sob os holofotes. Mas, nesse tempo, as coisas caminhavam um pouco mais devagar aqui no estado. Bastou que Blank entrasse na fita para que houvesse um “boom” nas publicações, inspiradas pelos versos tão crus do cariaciquense.

Imagine o tamanho do impacto que foi um homem divulgar poemas como “O dia de dar bandeira”, durante um período em que Vitória nem era inteiramente aterrada. O processo de urbanização ainda acontecia quando Sérgio quis falar sobre homoafetividade, no final dos anos 1980. Foi ali que ele chamou atenção pelo jeito tímido e os dedos pra lá de afiados na hora escrever.

O dia de dar bandeira (“Pus”, 1987)

salve o lindo
com perdão da palavra
esperança a única que falece
deixe estar eu a acender
cigarros no posto de gasolina
frisar a presença da partner tristeza
tenderlizando o local
mais uma lanchonete

refrão:
verde yellow blue branco

ai como eu sou lindo
um bicho bem besta
uma gargalhada destrói três obturações
me levando a comprar
outra pasta dentifrícia

refrão:
verde yellow blue branco
viva a bandeira do brasil (3)

Depois do primeiro livro, vieram Pus (1987); Um (1988); A tabela periódica (1993); Vírgula (1996); Os dias ímpares (2011), reunião das obras anteriores; e Blue sutil, sua última obra, lançada em fevereiro do ano passado, após 23 anos sem uma obra inédita. E de forma trágica, Sérgio morreu no dia seguinte após ter completado um ano na cadeira número 9 da Academia Espírito-Santense de Letras. Virou imortal para a história do Espírito Santo e, num curto intervalo de tempo, mortal para o plano terreno.

Ironicamente, nossa última conversa foi sobre a saudade. E agora, meu amigo, devo dizer que sentirei muito a sua falta. Olhe por todos nós!

E até breve.

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Maria Fernanda Conti
Revista Brado

Estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Espírito Santo. Colunista de Cultura da Revista Brado.