O debate do aquecimento global está encerrado

Nunca antes a humanidade viu suas florestas arderem tanto quanto em setembro de 2020

João Vitor Castro
Revista Brado
9 min readSep 23, 2020

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O céu já foi azul, / Mas agora é cinza / E o que era verde aqui / Já não existe mais. / Quem me dera acreditar / Que não acontece nada. / De tanto brincar com fogo / Que venha o fogo então! (Fábrica, Legião Urbana, 1986).

Incêndio de grandes proporções na Califórnia (setembro de 2020). Foto: Josh Edelson / AFP

Uma onda de incêndios florestais tem evidenciado que os problemas fatais do aquecimento global não pertencem ao futuro: eles já nos assolam. Esse argumento foi cunhado pelo jornalista norte-americano David Wallace-Wells em seu livro “A terra inabitável: Uma história do futuro”, mas se encaixa como uma luva ao abordar as queimadas de magnitudes nunca antes vistas em todo o planeta, que têm padronizado o mês de setembro pelo mundo. Apenas no Brasil, Amazônia, Pantanal, Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga sofrem com queimadas. Nos Estados Unidos, a Califórnia apresenta um verdadeiro show de horrores. Além disso, a Savana e as pradarias africanas; florestas tropicais na Indonésia; Austrália; França; Portugal; e até a tundra no Círculo Polar Ártico já tiveram parte de suas vegetações consumidas pelo fogo.

Planeta em chamas

Na Califórnia, os incêndios seguem se alastrando de forma assustadora e a fumaça escura e densa já chegou ao Canadá e ao norte da Europa. Mais de 80 mil hectares de mata já foram queimados desde o fim de agosto — mais de 30 vezes os recordes anteriores.

Apesar do negacionismo do presidente dos EUA — que não acredita no aquecimento global, retirou o país do Acordo Climático de Paris e revogou leis do governo Obama que impunham limites de poluição —, mais de 30 pessoas já morreram no que o governador de Washington, Jay Inslee, chamou de “incêndios climáticos”. Dos 10 maiores incêndios da história da Califórnia, 4 foram em 2020.

A Costa Oeste dos EUA — assim como a Austrália, a Savana e as pradarias africanas e o Cerrado e a Caatinga brasileiros — é uma região em que o fogo faz parte da regulação natural da floresta, sendo, em condições controladas, positivo para o solo e a própria vegetação. Entretanto, o que se vê hoje é um cenário de absoluto descontrole climático, que potencializa os períodos de seca e permite que o fogo se alastre de forma assustadoramente veloz e com uma quantidade de focos de calor simultâneos que não permite a renovação da floresta, e sim sua destruição.

O cálculo realizado pela WWF Austrália leva em conta os animais mortos no fogo somados aos que não suportaram os ferimentos e aos que não conseguiram sobreviver à perda de seus habitats. Foto: Mattheu Abbott / The New York Times

Na Austrália, apenas entre dezembro de 2019 e fevereiro de 2020, 11 milhões de hectares de mata queimaram, mais de 2 mil casas foram destruídas e mais de 30 pessoas morreram, assim como cerca de 1 bilhão de animais. Isso é extremamente grave, sobretudo em um país cuja fauna figura entre as mais ricas e singulares do planeta, mas que sofre com uma das maiores taxas de extinção de mamíferos no mundo.

Já em Portugal, o jogo se inverte. Seus incêndios, na maior parte criminosos, não foram — ainda — resultado do aquecimento global, mas contribuem significativamente com ele. A causa, que colocou 9 distritos em situação de emergência, foi basicamente o uso indevido de fogo com finalidades agrícolas.

Na França, quase 3 mil pessoas tiveram de ser retiradas da região de Martigues devido a um grande incêndio que dizimou mais de mil hectares de floresta, em agosto. Enquanto isso, 64 mil hectares já haviam queimado até o fim de julho na Indonésia.

Nem mesmo uma das regiões mais frias do planeta, o Círculo Polar Ártico, ficou de fora. Pouco antes do aumento na Califórnia, cidades siberianas foram cobertas por uma fumaça densa e a tundra ardeu em chamas após uma temporada de inverno e primavera mais quentes. O fogo, causado também pelo aquecimento global, contribuiu para sua retroalimentação, já que emitiu um recorde de 244 megatoneladas de dióxido de carbono para a atmosfera, 35% a mais do que em todo o ano de 2019.

Incêndios de grandes proporções chamados de Wildfires assolam a Califórnia desde agosto. Foto: Noah Berger / AP

Amazônia e Pantanal: os “exemplos para o mundo”

Apenas nas duas primeiras semanas de setembro, houve mais queimadas na Amazônia do que em todo o mês em 2019. Até o dia 14, o Inpe registrou 20.485 focos de calor no bioma. A média diária de focos tem sido de 1.400.

Não é difícil entender a gravidade desses dados: maior floresta tropical do mundo, a Amazônia é um reservatório natural de carbono indispensável para a redução do ritmo do aquecimento global. Com os incêndios, esse ciclo se inverte e a catástrofe climática é rapidamente intensificada. Além disso, 1 hectare da Floresta Amazônica possui cerca de 300 espécies de plantas e árvores, que figuram, em sua totalidade, como o lar de cerca de 3 milhões de plantas e animais e 1 milhão de indígenas.

Após a divulgação dos dados, o vice-presidente da República Hamilton Mourão afirmou que há um funcionário “de oposição” no Inpe, responsável pela divulgação de dados negativos sobre o desmatamento e as queimadas. O general reformado ainda disse que os incêndios brasileiros não são “padrão Califórnia”.

Entre agosto de 2019 e julho de 2020, o desmatamento cresceu mais de 34% na Amazônia, enquanto as queimadas chegaram a 56 mil focos de janeiro a setembro de 2020, maior número no período desde 2010. Foto: Fernando Alves/Governo de Tocantins

Agora o clima muda tão depressa / Que cada ação é tardia / Que dá paralisia na cabeça / Que é mais do que se previa. (Quede Água, Lenine, 2015).

Enquanto nossa floresta arde ininterruptamente, o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles e o vice-presidente compartilham vídeos falsos nas redes sociais que dizem que a Amazônia está em plena normalidade. Ao mesmo tempo, o presidente diz aos quatro cantos — inclusive na Assembleia Geral da ONU — que o Brasil é exemplo para o mundo quando o assunto é preservar o meio ambiente, apesar de ter tido seu voo para o Mato Grosso arremetido devido à fumaça dos incêndios. Se há funcionários de oposição ao governo Bolsonaro no Inpe não sabemos, mas está nítido que o governo brasileiro, esse sim, é de radical oposição ao Brasil e a um modelo de desenvolvimento que garanta o futuro e a vida das próximas gerações de brasileiros.

A novidade para grande parte das pessoas, embora não seja um evento novo ou isolado, são os incêndios que assolam o Pantanal, a maior planície alagada contínua do mundo e que abriga uma das maiores biodiversidades da Terra. Devido ao aquecimento global, o bioma sofre com a maior estiagem dos últimos 50 anos e já teve 20% de sua vegetação consumida pelo fogo.

Sebastião Silva Junior (40) tenta apagar incêndio em fazenda no Pantanal, a maior planície úmida do planeta (Poconé, MT). Foto: Amanda Perobelli/Reuters

Apesar das cenas de horror, das labaredas impressionantes e dos animais mortos no Pantanal e na Amazônia, quem também sofre com as queimadas é a Mata Atlântica. Entre janeiro e agosto foi registrado um aumento de 53% no número de queimadas no estado de São Paulo.

A partir desse cenário de catástrofe que nos assola, duas questões centrais devem ser levantadas. A primeira é de que não há debate sobre o aquecimento global e as mudanças climáticas. Esses são fatos, e quem os nega, nega a ciência e a objetividade, não muito diferente dos que negam a esfericidade da Terra e a procedência das vacinas. Com esses, não haverá convencimento, mas combate. Não combate de corpos ou armas, mas de ideias. O negacionismo climático não deve figurar nas bancadas da TV, tampouco nos auditórios das conferências e menos ainda nos palanques e palácios políticos. A questão do aquecimento global deve ser tratada como de fato é: objetiva, exata, real e imediata.

As famosas “Joshua Trees” californianas arderam em incêndio florestal no dia 18 de setembro. Foto: Ringo HW Chiu / AP

Algo que parecia tão distante / Periga, agora tá perto / Flora que verdejava radiante / Desata a virar deserto. (Quede Água, Lenine, 2015).

A segunda é o foco da defesa de nossos biomas e florestas. Estamos diante não mais de uma projeção futura, mas de uma emergência global que já mostra seus efeitos catastróficos. Segundo a NASA e o Sistema Copernicus, da União Europeia, os incêndios florestais que presenciamos são os maiores de todos os tempos, com base nos 18 anos de pesquisas e dados sobre incêndios florestais globais.

É claro que nem todos esses incêndios citados anteriormente possuem como causa central o aquecimento global, mas são influenciados por ele e, sobretudo, são alguns de seus agentes causadores. As queimadas fazem parte de um ciclo de retroalimentação das mudanças climáticas, pois liberam uma quantidade significativa de dióxido de carbono e outros gases causadores do efeito estufa. Isso torna a Terra mais quente e as florestas mais secas, aumentando, por sua vez, a probabilidade de novos incêndios florestais.

Não é de hoje que presenciamos catástrofes desse tipo. A novidade é que sejam tantas, tão potentes e velozes e de formas tão similares e em todas as partes do mundo. E isso é apenas o começo. Ainda estamos nas fases iniciais dos efeitos do desequilíbrio climático, que afetará não apenas as florestas e os animais silvestres, mas a vida, a política, a economia, a saúde e os modelos de trabalho, produção, consumo e relações interpessoais de todos os seres humanos do novo século. Essa transição ocorrerá; o que está em jogo é como ela se dará e o quão dispostos estamos a aprofundar esse problema e sofrer seus danos.

Uma das pontes mais famosas dos EUA foi coberta pela fumaça dos incêndios florestais que assolam a Costa Oeste há semanas. Foto: Harold Postic / AFP

Isso leva à percepção de que a luta pela preservação do meio ambiente precisa, mais do que nunca, deixar os anúncios de canudos metálicos e purpurinas biodegradáveis rumo aos palanques políticos, às conferências nacionais e internacionais, aos protestos de rua e ao centro de nossas escolhas eleitorais.

Se há 50 anos a política internacional era pautada por ameaças nucleares e um risco iminente de guerra atômica, hoje precisamos reconhecer que caminhamos para um cenário tão ou mais destrutivo que uma guerra mundial, mas essa questão continua preterida do debate público, em nome, muitas vezes, de fantasias coletivas — como o fantasma comunista — que sustenta projetos de poder criminosos que, embora neguem sua existência, conhecem bem o poder destrutivo do desequilíbrio climático planetário.

Setembro de 2020, que ainda não chegou ao fim, foi o mês mais inflamável que o Pantanal já teve. Foto: Mayke Toscano/Secom-MT

Enquanto discutimos os absurdos proferidos cotidianamente pelo presidente da República e seus capangas, essa mesma quadrilha segue desmontando as estruturas de fiscalização e controle do Estado e perpetuando seu trabalho para minar os freios e contrapesos da democracia. Assim, Salles segue com seu propósito de “dar de baciada” na legislação ambiental, para que seus financiadores sigam, literalmente, passando a boiada sobre nosso Pantanal; nosso Cerrado; nossa Mata Atlântica; nossa Caatinga; nossa Amazônia; e, figurativamente, sobre nossa economia; nossas relações exteriores; nossa saúde; e nossa qualidade de vida.

Não podemos nos enganar, entretanto: Bolsonaro não age sozinho em sua política de desmonte. Ironicamente, a Califórnia vive o mais incendiário ano de sua história justo durante a campanha que pode levar à reeleição do maior — e mais poderoso — negacionista do planeta. Passou da hora de elevarmos a questão ambiental ao mesmo nível das principais pastas do debate político, para que não acabemos sufocados pelo poder de líderes tirânicos, corruptos e genocidas, que ao invés de levar seus adversários aos paredões de fuzilamento, contribuem para a destruição dos próprios meios de subsistência da vida humana.

O aquecimento global é um fato presente, e a maior comprovação disso é o que nossos próprios olhos assistem neste incendiário e irrespirável setembro de 2020.

“Wildfires” pintaram de laranja o céu da Costa Oeste dos Estados Unidos. Foto: Noah Berger / AP

Esse ar deixou minha vista cansada.

Nada de mais…

(Fábrica, Legião Urbana, 1986).

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João Vitor Castro
Revista Brado

Jornalista, editor-chefe da Revista Brado e autor de “Refluxo” (Pedregulho, 2023).