O golpe já começou

E ele tem o apoio de mais de 90% do Congresso Nacional

João Vitor Castro
Revista Brado
8 min readJul 18, 2022

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Desfile cívico-militar de 7 de setembro na Esplanada dos Ministérios (2019). Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Há um golpe de Estado em curso no Brasil.

Na última quarta-feira (13), a Câmara dos Deputados aprovou, com 569 votos a favor e 17 contra, o texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 15/2022, apelidada pela imprensa de PEC Kamikaze ou PEC dos Auxílios — e pelo ministro Paulo Guedes de PEC das Bondades. Na última quinta-feira (14), a PEC foi promulgada pelo Congresso Nacional e virou Emenda Constitucional (EC nº 123).

Resumidamente, a Emenda autoriza que o governo federal aumente em até R$ 41,25 bilhões acima do teto de gastos o orçamento destinado a programas e benefícios sociais. Com isso, o governo federal vai aumentar o Auxílio Brasil de 400 para 600 reais, criar uma bolsa-caminhoneiro de mil reais e um auxílio gasolina a taxistas de 200, além de aumentar os repasses para um programa voltado a agricultores familiares e transferir quase 4 bilhões a créditos tributários sobre o etanol. Grosso modo, o Congresso Nacional autorizou o presidente da República a turbinar o orçamento voltado justamente para os setores do eleitorado que mais rejeitam seu governo ou nos quais ele mais perde apoio, a menos de três meses das eleições.

O problema é que, antevendo que presidentes espertinhos — para não dizer outro adjetivo — tentariam turbinar os gastos sociais a fim de vencer as eleições com a mão amiga da máquina pública, a Constituição Federal, em seu Artigo 16, proíbe esse tipo de medida no prazo de um ano do pleito eleitoral — princípio da anterioridade eleitoral, cláusula pétrea. Ou seja, a proposta é inconstitucional. Mas isso não é problema para o Congresso Nacional. Não nos tempos de Jair Bolsonaro e Arthur Lira.

Art. 16 A lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após sua promulgação .

Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 4, de 1993)

Para driblar a Carta Magna, parlamentares bolsonaristas acrescentaram na PEC a criação de um estado de emergência em razão da “elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais deles decorrentes”. O estado de emergência é a percepção da iminência de danos à saúde e aos serviços públicos, que permite ao Executivo gastos extraordinários. Só há um problema que esqueceram de contar: o estado de emergência autoriza o governo federal a agir contra “ameaças à sua integridade política”. O que isso significa? Pois é.

Bolsonaro, Rodrigo Pacheco e Arthur Lira em cerimônia de posse dos parlamentares como presidentes das Casas Legislativas. Brasília, 3 de fevereiro de 2021. Foto: Pedro França/Agência Senado

Segundo artigo publicado na última sexta-feira (15) no portal Consultor Jurídico (Conjur) pelos professores de Direito Constitucional Lenio Streck e Matheus de Freitas, o estado de emergência configura outra inconstitucionalidade da Emenda, pois busca “incluir, por vias oblíquas, uma terceira modalidade de estado de exceção na Constituição Federal, sem as restrições previstas para o Estado de Sítio e de Defesa, em manifesta ameaça aos direitos e garantias individuais dos brasileiros”.

Além disso, para garantir a rápida aprovação, o texto foi anexado a outro e sessões extraordinárias atropelaram os prazos de tramitação. Quando, na terça-feira, uma falha no sistema eletrônico de votação fez o presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) suspender a sessão, ele aproveitou para mudar o Regimento Interno da Câmara — sendo que a suspensão, que por lei só é permitida durante uma hora, durou quase um dia inteiro. Com as mudanças, parlamentares puderam registrar o voto remotamente, o que garantiu um quórum ainda mais favorável ao governo. Isso tudo sem esquecer que durante a tramitação do texto o governo federal liberou R$ 5 bilhões em emendas do orçamento secreto.

A PEC foi aprovada e promulgada com o apoio de todos os partidos, com exceção do NOVO. Dos 513 deputados, apenas 17 votaram contra no segundo turno: Adriana Ventura, Alexis Fonteyne, Gilson Marques, Lucas Gonzalez, Marcel von Hattem, Paulo Ganime, Tiago Mitraud e Vinícius Poit do NOVO; Bozella, Felipe Rigoni, Kim Kataguiri e Dayane Pimentel do União Brasil; Frei Anastacio do PT; Guiga Peixoto do PSC; Joyce Hasselman e Pedro Cunha Lima do PSDB; e Marcelo Calero do PSD. Sim, além de Frei Anastacio (PT-PB), todos os deputados que votaram contra o drible constitucional de Bolsonaro e Lira são de direita. No Senado, a coisa é ainda mais assustadora: só José Serra (PSDB-SP) votou contra.

Frei Anastácio (PT-PB) foi o único parlamentar de esquerda que votou contra a PEC Kamikaze. Foto: Divulgação

Por si só, o aumento dos auxílios sociais a três meses do pleito já é um golpe na democracia brasileira. Some-se a isso os sucessivos pequenos golpes que foram dados no Regimento Interno da Câmara para aprovar a PEC. Contemos ainda com a introdução do estado de emergência para driblar a Constituição. Por fim, acrescente na mistura o assassinato político ocorrido no último final de semana, o atentado com bombas de fezes num comício petista na última semana e a denúncia estampada na capa da Revista Veja da última quarta-feira (13) de que militares em reunião ministerial afirmam que o resultado da eleição será “auditado com ou sem o aval” do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Reprodução/Revista Veja

É claro que o ônus político da oposição ao rejeitar o “pacote de bondades” de Bolsonaro seria enorme. Afinal, as medidas da PEC são defesas originais da oposição, não do governo, e ninguém quer ter seu nome estampado num cartaz acusado de votar contra a entrega de mais dinheiro aos mais pobres na véspera de um pleito eleitoral. Mas há ônus que devem ser assumidos se tratando da iminência de um golpe de Estado. Até deputados de oposição que votaram com convicção — e não suponho que foram poucos — deveriam ter se atentado ao risco iminente da proposta, e assim mudado seu voto — sim, dobrando suas convicções, pois há coisas mais importantes que elas. A democracia, talvez.

Diversas vezes citei em meus textos o que considero a obra mais importante deste século, o livro “Como as democracias morrem”, dos professores de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Os autores são cientistas políticos que dedicaram a vida a estudar exatamente isso: como democracias morrem — no caso de Levitsky, com foco na América Latina. A principal tese do livro é: democracias, após a Guerra Fria, morrem aos poucos. Não são tanques nas ruas e palácios bombardeados que anunciam o início de um golpe de Estado; mas pequenas ações tomadas no dia a dia da arena política, pequenos pontapés aqui e acolá nas grades que protegem a democracia. Se ontem golpes duravam poucas horas e rompiam com toda a estrutura política, hoje eles duram anos; são processos lentos de desfibrilação das instituições.

Num artigo publicado na última quinta-feira (14) no Conjur, o professor Paulo Modesto inicia o texto citando David Landau e seu conceito de constitucionalismo abusivo. Esse termo se refere a uma das características que Levitsky e Ziblatt citam como arma de quem quer destruir a democracia: “o uso de mecanismos de reforma constitucional para erodir a ordem democrática”. Não há outro nome para as mudanças no Regimento Interno da Câmara durante uma sessão suspensa irregularmente. Não há outro nome para todas as manobras dadas por Lira e seus aliados para acelerar a aprovação da PEC Kamikaze. Não há outro nome para uma Emenda que mistura a permissão de gastos extraordinários eleitoreiros a três meses da eleição com um estado de emergência. Para a Transparência Internacional — Brasil, esse foi “o episódio mais radical do autoritarismo legislativo imposto ao país por Lira e Bolsonaro”.

Sim, há um golpe de Estado em curso no Brasil. Aquele, cujo estopim — esperamos que sequer ocorra — pode ser em setembro, outubro, dezembro ou no começo de janeiro, ele já começou. Há um golpe de Estado em curso num grande acordo nacional, com oposição, com tudo — para não deixar de referenciar um dos mais icônicos momentos da República das bananas na qual este país foi transformado. Há um golpe de Estado em curso com o apoio de todos os parlamentares brasileiros com exceção dos 17 que votaram contra a PEC, que não era apelidada de Kamikaze à toa, mas porque representa sim um suicídio político, fiscal e, também, um suicídio republicano e democrático. Há um golpe de Estado em curso e a única instituição da República que tem o denunciado dia e noite incansavelmente é a imprensa.

Em seu histórico discurso durante a promulgação da Constituição de 1988, muitas vezes já citado nesta coluna, o imortal presidente da Constituinte Ulysses Guimarães cravou — e repetiu: “traidor da Constituição é traidor da pátria”. Na última semana, para o desespero de Ulysses, Tancredo, Dante e outros tantos fiéis e verdadeiros patriotas, 469 deputados, 49 senadores e um presidente da República traíram a Constituição e, consequentemente, traíram a pátria. Como Juscelino Kubitschek ao apoiar o golpe militar para vir melhor na eleição de 1965, as bases de todos os candidatos fortes ao Palácio do Planalto — de Lula a Bolsonaro, passando por Ciro e Simone — votaram ‘sim’ para o golpe de Bolsonaro e Arthur Lira.

O então deputado Jair Bolsonaro vota pela admissibilidade do processo de impeachment de Dilma Rousseff. Bolsonaro dedicou seu voto à “memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”, notório torturador da ditadura. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Até quando as instituições, a elite política, a elite econômica e parte significativa do eleitorado brasileiro vão fingir que o presidente da República não foi acusado de pedir pessoalmente ao presidente de outro país para interferir no nosso processo eleitoral? Até quando vão fingir que o homem que ocupa o Palácio do Planalto tem algum pudor em dizer que não aceitará outro resultado que não a sua reeleição? Até quando vão fingir que já não há terrorismo político ocorrendo no Brasil, que a bomba de fezes foi um caso isolado, que o assassinato de Marcelo Arruda em Foz do Iguaçu não tem nada a ver com Brasília?

Adotando uma voz pessoal que não costumo adotar em meus textos: eu ainda acredito na democracia brasileira e acredito firmemente que ela vencerá. Não que não haja medo em mim — pois há muito — mas há, como sempre houve, ainda mais esperança. Mas o que há de objetivo, hoje, é a frase que mais repeti neste texto: há um golpe de Estado em curso. E, se nada de efetivo for feito para impedi-lo, ele continuará o seu curso, até sabe-se lá onde.

Se a democracia porventura morrer, não digam que — por mais de quatro anos — eu não avisei. Pois avisei e seguirei avisando até o último dia (seja ele de glória ou de caos): há um golpe de Estado em curso no Brasil.

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João Vitor Castro
Revista Brado

Jornalista, editor-chefe da Revista Brado e autor de “Refluxo” (Pedregulho, 2023).