O meio ambiente também é uma questão de classe

Ao contrário do debate elitizado, os problemas reais dos novos tempos atingirão em cheio os mais pobres e vulneráveis

João Vitor Castro
Revista Brado
6 min readOct 22, 2020

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Suponho que você já esteja cansado de saber da maioria dos impactos ambientais das nossas ações. Aquecimento global, derretimento das geleiras, aumento do nível do mar, destruição da camada de ozônio, poluição, extinção de espécies, alterações climáticas. Não é de hoje que esses termos têm espaço exclusivo nos noticiários, nas pesquisas científicas e nas mesas de debate.

Mas você sabe quais são os efeitos socioeconômicos desses impactos ambientais?

Quem é mais afetado pelos problemas ambientais?

Façamos um simples exercício: pense nas temporadas de chuva da sua cidade (se morar em uma região que costuma sofrer com a seca, pense nessas temporadas também). Agora imagine as regiões que mais sofrem nessas épocas, seja com enchentes ou com a estiagem. Em quantas áreas nobres você pensou?

Certamente, em poucas. Embora algumas regiões de alto poder aquisitivo também sofram com enchentes, como Petrópolis, no RJ, a associação entre distribuição de renda e risco de enchentes e deslizamentos é comum na maior parte não só do Brasil, mas de todo o mundo. Segundo estudo de 2018 da Climate Trends, empresa de pesquisa climática sediada na Índia, populações que vivem em regiões de baixa renda têm 7 vezes mais chance de morrer e seis vezes de serem feridas ou terem que se deslocar em decorrência de problemas climáticos do que os habitantes de regiões mais ricas. O motivo é simples: pessoas de alto poder aquisitivo buscam construir ou comprar suas moradias em regiões mais seguras — em todos os sentidos.

O bairro de Cobilândia, em Vila Velha, após chuvas intensas no mês de maio de 2020. Os alagamentos no bairro são recorrentes em toda temporada de chuva. Foto: Hemerson Oliveira

Tudo bem, mas isso é algo que sempre ocorreu, independentemente dos problemas ambientais, certo? Sem dúvidas. As mudanças climáticas não são a causa desses problemas, mas um intensificador.

O aquecimento global e todos os demais problemas que surgem das ações humanas estão e continuarão gerando alterações em todo o regime climático do mundo, o que inclui temperatura, pluviosidade, umidade, sensação térmica e vegetações, só para citar alguns exemplos. Isso significa que regiões de muita chuva terão mais chuva ou não terão nenhuma; assim como regiões de muita seca podem sofrer diversos tipos de alterações; e que regiões de risco podem se tornar muito piores em um futuro não tão distante.

Mas, além disso, o derretimento das geleiras vem acelerando o aumento do nível do mar em todo o planeta. O último estudo divulgado pelo IPCC (painel de cientistas da ONU voltado ao clima) mira 43 centímetros de aumento do nível dos oceanos até 2100, em um cenário otimista em que o Acordo de Paris seja devidamente cumprido por todos os seus países membros, ou seja, com um aumento de apenas 2°C da temperatura do planeta. Entretanto, caso as emissões de carbono sigam nos ritmos atuais — cenário mais provável, sobretudo após a saída dos EUA do Acordo –, o aumento da temperatura deve ser no mínimo de 4°C, o que acarretará em cerca 84 centímetros de aumento do nível do mar até 2100. Isso seria o suficiente para deixar grande parte de Londres, Rio de Janeiro e Nova York inundadas pelo oceano.

Esse estudo, por sinal, foi divulgado em setembro de 2019, ou seja, um ano antes do setembro mais quente da história, quando até a tundra siberiana sofreu com queimadas e milhares de hectares florestais que contribuem para a atenuação do aquecimento global viraram cinzas.

A Google, por meio da plataforma Earth, realizou uma simulação de como serão algumas das maiores cidades do mundo caso as previsões de aumento de temperatura média da Terra se concretizem. Além do vídeo, é possível também realizar um “tour” na própria plataforma clicando aqui.

Neste momento você pode estar pensando: “mas todos serão afetados por isso”. Sem dúvidas. O problema é que parte dos afetados, ao ver o mar avançando em direção às suas casas; às suas empresas; às escolas de seus filhos, abandonará a cidade em busca de um local mais alto, nas montanhas ou nos planaltos, ou em cidades melhor equipadas para resistir às mudanças. Da mesma forma, quem tiver suas regiões assoladas pela seca buscará fugir dali o quanto antes. Quantas o poderão fazer?

No Brasil, 30 milhões de pessoas com certeza não pensarão duas vezes; 115 milhões, com alguma dificuldade, também conseguirão migrar; 63 milhões terão de rezar para que suas cidades não sejam tão afetadas ou para que o governo ou terceiros as ajudem. Esse é o retrato atual das classes sociais no país: 63 milhões de pessoas (30% da população) ainda recebem abaixo de 2 salários mínimos.

Foto: Annie Spratt/Unsplash

A economia do novo mundo

Diante desse cenário desastroso para o qual nos encaminhamos, é claro que teremos diversas alterações econômicas. Os impactos mais certos serão na especulação imobiliária, já que diversas áreas perderão valor, enquanto outras se tornarão verdadeiros paraísos financeiros; e, sobretudo, nas compras do mês.

Diversos estudos evidenciam que as mudanças climáticas podem levar à extinção quase metade das espécies vegetais e animais que conhecemos hoje. Entre os animais, um que há muito já se fala de extinção são as abelhas, o principal agente polinizador. A extinção de polinizadores acarretará uma intensificação de algo que as próprias alterações do clima já proporcionará: a extinção de diversos tipos de vegetais e grãos. Entre eles, estima-se que 60% das espécies de café, por exemplo, estão sob ameaça.

Além disso, muitos dos vegetais que permanecerão em nossa dieta terão uma grande perda nutritiva, com redução da oferta de vitaminas, por exemplo, contribuindo para o crescimento da insegurança alimentar em todo o planeta. Apenas hoje, mais de 820 milhões de pessoas passam fome e 1,5 bilhão carecem de nutrientes em sua dieta.

Isso levará a um aumento exponencial do preço dos alimentos. Segundo o IPCC, o custo para se comprar cereais deve crescer 29% apenas até 2050. Com a oferta de alimentos nutritivos reduzida e o encarecimento constante do preço dos produtos, o resultado é óbvio: mais pessoas morrerão de fome. Quais pessoas? Certamente não serão os 30 milhões de brasileiros que conseguirão se refugiar dos alagamentos com tranquilidade.

Um novo olhar sobre o ambientalismo

O ambientalismo ainda enfrenta uma série de problemas, sobretudo em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como o nosso. O maior desses problemas, hoje, é a elitização do debate acerca dos problemas ambientais. Por ser algo relativamente recente, esse debate ainda está muito restrito às universidades e à classe média-alta das grandes cidades, além de ser muitas vezes mal visto por pessoas de baixa renda, que o associam — não sem razão — a algo elitista e distante da realidade concreta.

Precisamos de um novo olhar, mais inclusivo e eficaz, sobre o meio ambiente. Precisamos que as pessoas das classes D e E sejam incluídas nesse debate e fortaleçam as causas ambientais, mesmo porque serão elas as maiores vítimas do novo mal do século.

Protesto estudantil pelo clima em 2019 na Alemanha. Em muitos países os protestos de massa pelo clima têm se multiplicado, tornando-se uma das principais pautas políticas. O Brasil ainda possui problemas estruturais urgentes e importar esses protestos é algo discutível, mas é urgente uma maior inserção das pautas ambientais no debate político, sobretudo entre grupos populares. Foto: Jens Meyer/AP

Enquanto os movimentos ambientalistas se restringirem aos canudos de metal, às ecobags e ao glitter biodegradável — que também são importantes –, esquivando-se da política e dos movimentos de massa, estarão fadados ao fracasso. Pensar em mudanças de hábito é essencial, mas sem resolver os problemas do hoje, do agora, são apenas palavras vazias e egocêntricas. É preciso que a bandeira verde seja levantada, sobretudo, pelos que sem ela morrerão de fome, sede e desnutrição.

Diversos estudos apontam que a humanidade pode acabar em menos de 100 anos devido às mudanças climáticas. Esses estudos, entretanto, não levam em conta a adaptabilidade do ser humano. É pouco provável que sumamos tão cedo da Terra: desenvolveremos novas tecnologias, colonizaremos novos espaços, dominaremos novas técnicas. Mas é certo que a vida de muitos humanos acabará, e esses têm uma característica muito clara em comum: a pobreza.

“E [quando] a tragédia da seca, da escassez / Cair sobre todos nós / Mas sobretudo sobre os pobres, outra vez / Sem terra, teto nem voz / Quede água, quede água?”

(Quede Água, Lenine, 2015).

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João Vitor Castro
Revista Brado

Jornalista, editor-chefe da Revista Brado e autor de “Refluxo” (Pedregulho, 2023).