O que esperar do Peru de Pedro Castillo?

Novo presidente encontrará um país dividido e absorto num mar de incertezas

João Pedro Sabino Frizzera
Revista Brado
8 min readJun 17, 2021

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Na última terça-feira (15) o professor e sindicalista Pedro Castillo foi confirmado o novo presidente eleito do Peru, após encerramento da contagem dos votos da eleição realizada no último dia 6. As expectativas sobre as presidenciais peruanas foram altas, se tratando de uma disputa acirrada que terminou com uma diferença de décimos entre Castillo e a derrotada Keiko Fujimori.

No Brasil, observar esse evento é importante, pois em boa medida as condições políticas e as opções eleitorais do país vizinho assemelham-se ao que se espera daqui no próximo ano. Isso porque, além das similaridades de condições sociopolíticas entre as duas nações, o resultado de lá também poderá servir como termômetro para o Brasil e toda a região.

Pedro Castillo e Keiko Fujimori. No momento da publicação deste artigo, a diferença dos votos entre os dois é de apenas 44 mil votos. Fotos: Sebastian Castaneda/Reuters e Stinger/Reuters

Por nunca ter ocupado um cargo público, Castillo é considerado um outsider da política — tal como Hugo Chávez e Donald Trump, por exemplo — e seus ideais misturam elementos identificados como parte da extrema-esquerda e uma boa dose de conservadorismo. O professor declarou sua vitória antes mesmo do fim da contagem dos votos e da validação do resultado pela justiça, o que gerou controvérsia no país.

No extremo oposto do espectro político, Keiko Fujimori era a candidata da extrema-direita conservadora e a natural herdeira da visão política de seu pai, Alberto Fujimori, que foi ditador do Peru entre 1990 e 2000. No momento ela também enfrenta alguns processos na justiça peruana e não reconheceu o resultado das eleições. Além disso, ela ainda pode ser presa pela “Lava-Jato peruana” ao fim de todo o processo, por denúncias de lavagem de dinheiro. Keiko já havia sido presa preventivamente antes da eleição, mas conseguiu liberdade condicional.

Com dois candidatos que defendem praticamente o oposto um do outro — a não ser em pontos mais ligados às pautas de costumes –, a polarização do debate político parece inevitável. Em uma situação como essa, as instituições de um país precisam ser sólidas o bastante para segurar os impulsos dos demais atores políticos, evitando que a desordem tome lugar no processo democrático. Infelizmente, a instabilidade social, a indefinição de um programa político de longo prazo — vide os quatro presidentes em apenas 5 anos — e a rejeição da classe política já estabelecida, torna a rigidez dessas instituições impossível, o que resulta num maior risco de ruptura partindo de um dos lados.

Pior ainda, é que os próprios discursos dos dois finalistas também mostram o quão longe do aceitável as instituições do país se encontram, por terem permitido que duas pessoas com claros impulsos autoritários chegassem tão longe. Keiko, por exemplo, promete o perdão dos crimes contra a humanidade cometidos por seu pai em seu governo e propõe uma demodura — um governo que una os supostos aspectos positivos da autarquia com a democracia.

Enquanto isso, Castillo é abertamente contra a união homoafetiva e rejeita a existência de uma imprensa livre no país. O presidente eleito também falou, ainda no primeiro turno, sobre fechar o Tribunal Constitucional, a mais alta corte do país. Ambas as posturas são inaceitáveis para uma sociedade democrática e expõem a situação deplorável que o atual sistema político se encontra. Como nada parece ser proposto para mudar a situação, a estabilidade política não deve chegar tão cedo ao Peru.

Tendo tudo isso em mente, é preciso observar um fator adicional que complica ainda mais a crise no país vizinho: o problema não é meramente a crise das instituições republicanas e da democracia, que se repete no mundo todo, mas também o conflito histórico que permeia a sociedade peruana — que em muito se assemelha às contradições internas do Brasil. Trata-se da enorme desconexão entre as sociedades da cidade e do campo, dos ricos e dos pobres, dos brancos e dos indígenas.

Esse descompasso entre as realidades vivenciadas em um mesmo país torna difícil a formação de instituições duradouras, estáveis e mesmo democráticas, pois essas só podem ser construídas com a rigidez do tempo. Ao longo da história, nota-se que o Estado foi utilizado por um ou outro grupo para consolidar seus ganhos e suas vontades sobre os demais. Para melhor entender esse conflito, talvez seja melhor dar alguns passos para trás e olhar brevemente para alguns momentos da história peruana.

A história do Peru é uma que em diversos pontos se repete no restante do continente, por isso pode soar bastante similar para os ouvidos brasileiros. Nem por isso, no entanto, deixa de ser fantástica: é uma história que se estende milhares de anos antes da chegada de Francisco Pizarro na costa do Pacífico em 1535 e da subsequente invasão dos conquistadores espanhóis. A administração colonial de todas as posses espanholas se concentrou na Ciudad de los Reyes, hoje a capital peruana de Lima, mas até então boa parte do país esteve nas mãos dos Incas, que formaram um império vasto e extremamente organizado.

Cuzco era o coração desse vasto Império, que se encontrava nas montanhas dos Andes. Apesar de sua brava resistência contra a expansão espanhola, Tupac Amaru, o último representante político dessa sociedade indígena, foi capturado e morto pelos espanhóis em 1574. Séculos depois, em 1780, um homem chamado de José Gabriel Condorcanqui, descendente da nobreza dos Incas, rebelou-se contra o domínio espanhol.

Após tentar convencer as autoridades coloniais, sem sucesso, de que as exigências de trabalho dos indígenas eram altas demais e que muitos adoeciam e morriam por conta das condições sobre eles impostas, Condorcanqui iniciou uma insurreição indígena contra os colonizadores, adotando para si o nome de Tupac Amaru II. Seu destino foi o da execução pública no centro da praça de Cuzco um ano depois, mas as consequências de sua rebelião seriam profundas sobre a sociedade colonial e, quando Napoleão invadiu a Espanha alguns anos depois, a semente para uma nova rebelião já havia sido plantada.

Imagens estilizadas de Tupac Amaru II feitas pelo governo do general Velasco Alvarado (1968–1975). Ainda hoje, a figura revolucionária de Amaru II é bastante viva no espírito coletivo da nação peruana.

Todo o continente entrou no turbilhão revolucionário em poucos anos e no Peru não foi diferente. Como o centro do domínio espanhol nas Américas, muitas legiões espanholas partiram do Peru e tentaram retomar o controle em diferentes pontos das colônias, mas sem sucesso no fim das contas. Em 1821, os libertadores da Argentina, do Chile e da então Grã-Colômbia confluíram-se no Peru, onde as últimas batalhas de independência ocorreram.

O que exatamente podemos tirar de toda essa história? Há uma palavra do alemão — zeitgeist — que se traduz como “espírito da época” e acredito que, dada a devida proporção, o que se sentia nesse momento seja similar ao que vivenciamos hoje: incerteza, medo e insegurança. Esses sentimentos estão incorporados à população, ao mesmo tempo em que há a esperança de transformações positivas emergindo depois de tudo isso.

Naquela época, quando a guerra se tornou a ordem do dia, as diferentes aspirações, tão desconexas entre si, buscaram se sobressair umas às outras, criando novos conflitos entre si mesmas e levando à sensação de que a sociedade como um todo não sabia para onde ir ou o que desejava de si. Um historiador peruano, na verdade, nos detalha muito bem sobre o sentimento que se tinha: murais dessa época retratavam um mundo de ponta cabeça, onde o réu aguardava pelo juiz, os agiotas exerciam a caridade e os toureiros investiam-se contra os touros

Em uma pintura de Tadeo Escalante do início do século XIX na Igreja de São João Batista de Huaro em Cuzco, observa-se membros do clero católico em meio ao Juízo Final, sendo punidos como todos os outros pecadores e atacados por criaturas pagãs. Foto: Teoliterias

Mesmo que não na mesma intensidade, esse conflito permaneceu constante ao longo da história peruana, como bem demonstrado por sucessivas tentativas estabelecer uma ordem interna alternativa à anterior. Assim, essas imagens de confusão parecem voltar a se associarem aos nossos tempos, especialmente agora quando teremos que lidar com um era pós-Covid-19.

Assim sendo, uma possível conclusão que pode ser feita sobre os resultados eleitorais é de que o Peru pode começar a caminhar, ao menos por enquanto, em direção à maior justiça social e reparação das duras condições sociais vividas por grande parte de sua população com um governo de Castillo, a despeito de sua postura antiprogressista em vários aspectos.

No entanto, é mais do que certo de que a instabilidade política irá perdurar muito além das eleições atuais e poderá, inclusive, ameaçar a integridade do mandato do novo presidente. Talvez ainda mais desanimador seja saber que ele sequer terá a vantagem parlamentar, ou seja, jamais conseguirá fazer mudanças, reformas ou ações profundas sem negociar com os parlamentares na oposição.

O fato de que Castillo não tem muita experiência política em governar e terá de lidar com a oposição confrontadora ironicamente o coloca em uma posição bastante similar àquela vivida por Alberto Fujimori quando iniciou seu governo. Na pior das hipóteses, ele poderá derrubar o Congresso e fechar as cortes de justiça, como fez Fujimori em 1992; ou então se ver incapaz de fazer qualquer reforma desejada e governar de uma forma completamente diferente do que foi proposto.

Ainda assim, há coisas positivas para se considerar: Castillo pode tornar o processo de tomada de decisões mais inclusivo e ajudar na inserção social de milhões de peruanos empobrecidos, que não se beneficiaram do crescimento econômico das últimas décadas.

Seja como for, o clima não é dos melhores em Lima. É imprevisível, desanimador e ao mesmo tempo inquietante. Se nada for feito para ajustar as instituições a fim de melhor coibir as vontades mais extremas, não tem como ser otimista. Na verdade, mesmo se for feito nesse sentido, não há governante no mundo que seria capaz desarticular as forças do histórico conflito em tão pouco tempo ou nessas condições.

Por fim, se o que aconteceu e ainda pode acontecer por lá serve como indicativo para o Brasil, é melhor que nós comecemos a pensar em formas de evitar a polarização extrema — ou então corremos o risco de também cair no mar da incerteza.

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João Pedro Sabino Frizzera
Revista Brado

Estudante de Relações Internacionais pela Universidade Vila Velha | Colunista de Política da Revista Brado.