O que sobrou do Japão no pós-guerra?

Uma reflexão sobre as influências da modernidade na cultura japonesa

Otávio Gomes
Revista Brado
11 min readJul 27, 2022

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Foto: @somemeans/Freepik

À primeira vista, a imagem mental que vem à cabeça do público geral quando o objeto de reflexão é a península japonesa revela um país rico e ordeiro, onde tradição e modernidade, uma vez superado o imperialismo chauvinista, complementam-se numa harmonia típica da cosmologia oriental. No entanto, para além dos padrões de qualidade material tipicamente nipônicos, o país reconhecido como a terceira maior economia mundial não esconde em seus anais recentes o processo incrivelmente traumático pelo qual se deu a sua transfiguração – e não falo aqui somente da mudança de regime político. Não só isso, seria ingenuidade pensar que uma cultura que permaneceu isolada da outra metade do mundo pela maior parte de sua existência teria permanecido incólume ante as mudanças radicais das estruturas que dela se originam.

Não é de se espantar que sob olhos ocidentais o sucesso material de uma nação seja suficiente para qualificá-la como bem-sucedida em seus propósitos. Afinal, foi o Ocidente o palco em que se encenou a tragédia a que chamamos de modernidade, onde orgulhosamente assistimos e continuamos a assistir ao espetáculo de tortura e morte das coisas que nos são mais caras. O enforcamento do “último rei nas tripas do último padre” não é só um lema jacobino, mas também um processo histórico de solapamento das bases espirituais que parasita a nossa cultura e delimitou ferreamente a influência exercida por ela nos séculos seguintes ao 18 de Brumário, e cujas raízes se lastreiam antes dele. Mas o que isso tem a ver com o Japão?

Muito antes da aurora do País do Sol Nascente nos anos 1950, o leviatã europeu já havia aportado em Quioto, no séc. XVI, e estabelecido um frutífero intercâmbio entre os dois hemisférios. Até então, o Japão jamais tinha visto qualquer rosto ocidental, o que propiciou uma preservação ímpar de sua nacionalidade. O poder exercido pelo imperador tinha lugar na hierarquia cósmica justificada pela sua descendência direta de Amaterasu, que, por sua vez, descendia do casal Izanami e Izanagi, cuja prole compreendia não só a Deusa Sol, mas também a própria extensão territorial do arquipélago que, em meio ao caos primordial, brotou do mar de fogo resultante do amor das duas divindades primeiras. O imperador era ikegami — deus vivo — e, por isso, possuía plenos direitos de exercer governo. O regime do ritsuryo, importado à imagem e semelhança do sistema imperial chinês, imperava absoluto desde sua gênese, até que, como diria Carl Schmitt, as forças de transformação vieram pelo mar e, quer por correlação, quer por causa e efeito, também uma série de insurreições em seguida, fazendo surgir o bakufu, um regime nobiliárquico de “proteção” ao imperador: na prática, a figura imperial resignava-se ao papel simbólico de elo espiritual da nação, enquanto o poder temporal era exercido pelo xogum, chefe da casa nobre de maior influência no momento.

Schmitt usa as bestas descritas no Livro de Jó — Leviatã e Beemote — como símbolos das forças históricas inexoráveis de transformação e conservação que acompanharam a história política ocidental. O Leviatã, besta oceânica e esguia, signo tradicional da revolta e ardileza, comumente associado à imagem da serpente, representa as ideias típicas dos países cuja posição geográfica privilegia o comércio e o intercâmbio cultural. Para o autor, a Inglaterra é o exemplo leviatônico máximo: país insular, desenvolveu, no início da Era Moderna, a melhor marinha de sua época, que permitia a expansão dos domínios do Estado inglês ao continente. Não à toa, a origem mesma do estado moderno é inglesa. Henrique VIII, inconformado com a incapacidade de sua cônjuge de gerar um herdeiro, proclamou-se Chefe da Igreja, retirando dela não só as posses de terra, mas, principalmente, o poder espiritual responsável por frear algumas das vontades do monarca, dentre as quais a anulação de seus casamento à revelia de, agora, Sua vontade.

É a mesma Inglaterra onde vai se gestar o liberalismo, doutrina política sobre a qual cabeças rolaram na já citada tragédia francesa. Porém, é no mesmo caldo anglicano e burguês que Edmund Burke irá expor a sua fatídica crítica aos jacobinos, influenciando remotamente a Revolução Americana, que pode ser entendida como uma resistência beemotiana exemplar -– ainda que sob um substrato mergulhado nas águas tortuosas da serpente gigante. Por esse modo, Beemote, simbolizado por um hipopótamo, em contraposição à serpente, representa as forças de conservação, complemento dialético substancialmente indistinguível da revolta e transformação e, por isso, tal como sua contraparte, é elemento integrante do caos, ao mesmo tempo que tese da Nova Ordem em que se sobressai vitorioso. De qualquer forma, uma ideia parece central: mecanicamente similar às revoluções protestantes e liberais, mas com características próprias de sua cultura, as influências externas oriundas do comércio de produtos e ideias com o Ocidente gestou na nação japonesa um processo de desconforto nas suas bases tradicionais cosmológicas de organização política, propiciando os processos históricos conhecidos como Restauração Meiji e Democratização Japonesa no Pós-Guerra. Contudo, não trato aqui essas influências como substancialmente idênticas ao que se passou nas potências europeias. Exponho aqui esse processo místico a que Carl Schmitt se refere ao usar de metáfora as feras bíblicas e que, como toda explicação mitológica, não trata das ferramentas analíticas para a intelecção científica de um fenômeno, mas de uma especulação poética sobre o fundamento das premissas do argumento exposto.

Reprodução obra "Behemoth and Leviathan" (1825), William Blake. Apesar do texto bíblico usar mais de uma espécie de animal para se referir tanto Leviatã quanto a Beemote, Schmitt descreve-as em seu texto de modo como Blake as representou em sua pintura.

De volta ao tópico principal, é a Restauração Meiji o ingresso do Japão na modernidade. É o primeiro processo de rompimento fugaz que o país sofre na sua estrutura sociopolítica, pois, diferentemente da superação do ritsuryo e instauração do xogunato, aqui houve um articulado e intencional projeto de ocidentalização de toda a sociedade japonesa, em velocidade ímpar, como um prelúdio do que os EUA fariam décadas mais tarde.

No período imediatamente anterior à Restauração, a Era Edo, o Japão desenvolve da sua cultura as características que podemos indicar como as mais pronunciadamente japonesas. O xogunato da família Tokugawa era especialmente empreendido nas iniciativas culturais e educacionais promovidas pelo Estado, algo semelhante ao que ocorria no Império Romano. Era a própria administração central que patrocinava a corte em estudos confucionistas. Aliás, são as religiões chinesas, notadamente o confucionismo, o taoísmo e o budismo, que forneceram ao amontoado disperso de folclores e cultos nativos da península japonesa a unidade doutrinária responsável por formar o que hoje entendemos por xintoísmo. Em especial, o confucionismo (e, aqui, dispenso a discussão sobre a natureza religiosa da doutrina ou se se trata de uma filosofia unicamente, apesar de seus elementos supersticiosos), com a sua cosmovisão que intui na ordem cívica a antevisão de um ordenamento divino e o resultado natural de uma moral virtuosa, fornecia ao regime a sua ética e filosofia política por excelência. Também a classe samurai, uma espécie de pequena nobreza e braço armado do Estado, composta por ferrenhos professantes do budismo, tinha na própria ética pessoal, o bushidô, o cultivo das virtudes necessárias ao exercício da função pública lhes confiada. Não é acidente que o alastramento endêmico do cristianismo no país em virtude do apostolado dos jesuítas gerou no governo preocupação suficiente para o ordenamento da perseguição à Igreja. O catolicismo foi o catalisador de sublevações das diversas classes sociais em que se instalava, de camponeses a samurais, contra o poder instituído. Entretanto, o xogunato resistiu impassível por cerca de 300 anos, armando-se da própria estrutura metafísica da realidade contra as forças de transformação interna e externa. Como um Beemote grande e gordo, permaneceu imóvel sobre as estruturas civis japonesas, garantindo a sua rigidez.

Porém, como bem nos lembra José Osvaldo de Meira Penna, a revolução não é um mero acaso, uma contingência, mas a consequência inescapável do processo civilizatório, que se molda e se renova pelos ciclos de caos e restauração da conjuntura política. Ao trauma institucional precede o trauma humano de revolta contra a autoridade, de desacobertamento da verdade escondida e desejo de discriminação lógica do Bem e do Mal, a partir de uma consciência liberta, em vistas da superação da obediência cega e, enfim, terrestrealização da justiça divina. Contudo, a despeito do furor revolucionário, lembra-nos o filósofo que “a revolução política a nada conduz. É a revolução metafísica o que […] liberta o homem de seus fantasmas opressores e o eleva à consciência do Bem e do Mal”. Tomo tais premissas para lançar, de antemão, que o processo conhecido como Restauração Meiji nada tem de restauração, mas de revolução — não pela acepção de incrível e rápido crescimento econômico e modernização política, e sim de transmutação da cultura. Em outras palavras, a Revolução Japonesa é antes a maculação de seu legado civilizacional pelas ideias modernas ocidentais do que uma reestruturação da sua política institucional.

O estopim dessa primeira revolução, como também a causa de seu sucesso, foi a impotência do regime do xogunato ante a superioridade tecnológica do invasor norte-americano. Seguindo a esquemática determinística de Schmitt, novamente o Leviatã havia estacionado nos portos japoneses. Em 1853, a armada americana aportou o comodoro Perry nas portas do governo, obrigando-o a revogar as políticas de isolamento econômico que o Japão guardava com relação ao Ocidente desde 1639. Assim, a sanha hegemonista norte-americana de expansão dos meios de ação política por meio da economia de mercado espelhou ao país oriental o seu rosto retrógrado e exótico. Nada exprimiu tão bem esse choque cultural quanto o filme “O Último Samurai”, no qual guerreiros japoneses, não importando o quão bem-preparados e paramentados para o combate, indelevelmente falhavam à investida de tiros de fuzis de assalto: a tradição milenar do ninjutsu e a katana não tinham a menor chance contra a pólvora e os canos de aço forjados em indústrias quase tão novas quanto os soldados que os portavam. Tal fraqueza fez suscitar antigas insatisfações de grupos de poder com o regime, em especial os samurais de baixa hierarquia, instaurando o movimento de uma sequência de revoltas que acarretou na extinção do sistema de protetorado militar do imperador e na acumulação do poder institucionalizado em sua figura pessoal. Inaugurou-se o período absolutista do império japonês.

Como é típico do processo civilizatório, à vitória das forças de transformação sobre as forças de conservação segue-se a concentração de poder. E, no caso particular do Japão, a introdução do iluminismo na alta-cultura japonesa fez seu sistema de governo ganhar contornos mais aparentados com le ancien régime do que com a propaganda iluminista. Antes disso, foi necessário que intelectuais tais como Yukichi Fukuzawa, Amane Nishi e Mamichi Tsuda empreendessem uma verdadeira cruzada contra as tradições de seu próprio país. O instinto de autofagia cultural era tamanho que, como nos conta Shozo Motoyama, “Tudo […] que era ocidental foi valorizado. Dessa forma, abandonou-se os quimonos para utilizar roupas no estilo europeu, difundiu-se o uso de guarda-chuvas, dos sapatos”. Continua o autor, “[…] destruiu-se ou vendeu-se por preço de banana edifícios do passado e produções artísticas antigas. O próprio budismo sofreu ataques, sobremodo o xintoísmo interessado em tornar-se a religião oficial”.

Foto: Crowded Tokyo Street, Japan by Underwood & Underwood, ca. 1905 (LOC). Repare na arquitetura da paisagem, nas vestimentas dos transeuntes e nos bondinhos passando pela rua: tudo tipicamente ocidental.

A Constituição da Nova Ordem garantia os meios para a adoção de tudo aquilo que anos mais tarde envergonharia a península: o capitalismo de mercado, trazido à força pelos norte-americanos, serviu como ferramenta de agregação de riqueza por meio do Estado para o seu projeto de industrialização e, por meio dele, a expansão e modernização tecnológica das forças armadas do império; militarização esta necessária para o projeto colonialista que, assim como estavam fazendo os recém-nascidos impérios europeus, buscava expandir o território da nação às outras adjacentes, deflagrando expedições militares e, em consequência, guerras que alimentam rivalidades regionais que perduram até os dias de hoje; colonização esta que demandava ao Estado o engenho de propaganda oficial do governo, a adoração ao imperador — ensinada nas escolas — e o constrangimento das religiões estranhas ao xintoísmo, cujo culto o governo considerava necessário à construção de uma nacionalidade dedicada ao projeto de desenvolvimento nacional. Desse modo, está desenhando o curso histórico que desembocou nas duas explosões atômicas nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, e no golpe final para que, hoje, quase nada do sistema político japonês lembre o Japão.

Finalmente, se o Japão absolutista e militarista não passava de uma imagem parcial e distorcida da cultura japonesa, o Japão pós-guerra é uma imagem do que os EUA desejaram que o país fosse. Com a rendição completa do Japão, o país perdeu completamente a sua soberania, tendo a gerência do Estado comandada pelo general norte-americano Douglas MacArthur. A função do general era impedir que a URSS estabelecesse bases militares na península e expandisse o raio de ação do movimento comunista para o extremo-oriente. A solução encontrada foi a liberalização do regime japonês, ou seja, transformar o sistema político do país numa democracia aos moldes ocidentais. Assim, por efeito da constituição promulgada em 1947, viu-se uma das maiores ignomínias políticas que se pode identificar em matéria de intervenção americana. De uma hora para outra, sob os auspícios de uma caneta sobre o papel, o imperador japonês foi obrigado a renunciar a seu título de ikegami e abrir mão de todos os poderes políticos dos quais a sua linhagem lhe garantia o direito de exercer. Não se tratou, desse modo, de uma simples liberalização de um regime absolutista à moda da Revolução Gloriosa; foi, antes, um reconhecimento público de que todo aquele mito que nos conta a homologia entre o clã imperial e a existência mesma da península japonesa, a partir de então, não mais valia. O povo japonês assistiu inerte à substituição da religião por excelência da nação pela Religião de César. Afinal, de que vale uma cultura milenar, cujos efeitos transcendem e perpassam o legado civilizacional de todo um povo, responsável por instruí-lo com relação à sua posição no cosmos, seus deveres perante à comunidade e, assim, situar a conquista da plenitude da identidade individual na busca pelo bem comum, sem o qual a mera possibilidade de organização política não pode sequer existir? Ao que tudo indica, nada.

É precisamente essa resposta que eu sondei através da pergunta “o que sobrou do Japão no pós-guerra?”. A tragédia japonesa é o retrato da tragédia do Ocidente anteriormente mencionada. Não importa que imagem utilizemos para melhor compreender toda essa questão. Uma cobra marinha gigante, a marinha mercante, etc. O problema fulcral é um só: há coisas muito erradas com o que nós chamamos de modernidade e iluminismo. A despeito das suas mais que óbvias contribuições positivas, tais como o método científico, a economia de mercado, as liberdades civis, entre outras, urge superarmos o paradigma do progresso humano contínuo e inexorável, este nefasto dogma positivista que, sob um otimismo primaveril, esconde um preconceito astuto contra as maneiras do ser humano se posicionar no mundo e compreendê-lo, mas que a “Religião da Humanidade” considera como “pré-científicas” e, portanto, irracionais. Seria perfeitamente possível o imperador japonês conservar o seu status religioso ao passo de uma liberalização do regime imperialista. Não só seria possível, como era imperativo que isso fosse feito. Não há nada de irracional em conservar valores, ideias e sentimentos que amamos — isso é uma constante inerente à psique humana. É isto a que Edmund Burke se referia na sua crítica à Revolução Francesa: não é destruindo o que amamos, face às injustiças do mundo, que devemos buscar solucioná-las. A razão demanda nos instalarmos na realidade concreta da história, com todas as suas imperfeições, se quisermos construir algo de valoroso no futuro, e não nos refugiando nas elucubrações fantasiosas, nos mundos de gabinete, ou num papel escrito o que quer que seja, enamorando o que poderia ser e ignorando o que de fato é. Devemos, como diria Chesterton, fazer o trabalho dos idealistas: olhar para frente, mas com um espelho. Amarmos de fato a humanidade, e não aquilo que desejaríamos que ela fosse.

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Otávio Gomes
Revista Brado

20 anos. Estudante de Jornalismo (UFES). Colunista de editoria de política da Revista Brado