Open source, o pai da aviação e o fim de um ciclo
Por mais que me doa dizer isso, tem que ser feito. Prometo ser rápido como quem arranca um band-aid: Santos Dumont não inventou o avião. Eu sei, eu sei… nessas alturas já é quase uma marca da brasilidade o ódio aos irmãos Wright. Boa parte dessa polêmica se dá pela comparação do famoso voo do 14-bis ao redor da Torre Eiffel em 1906 e o Flyer-1 dos irmãos norte-americanos em 1903 (e sua polêmica catapulta para decolagem).
Porém, fato é que nenhum dos dois foi o primeiro avião, pois para o ser são necessárias as capacidades de controle no ar, pouso e decolagem, e principalmente a possibilidade de longos períodos de operação, determinados apenas pelo limite de combustível, coisa que os 21,5 e 59 segundos, respectivamente, não configuram. Esse título fica com o Flyer-3, voando por 39 minutos em 1905 e, mais convincentemente, em vários voos longos em 1908, por um tour de promoção na França.
Mas calma, tem um porém. Mesmo não sendo o inventor do avião, indiscutivelmente Dumont é o pai da aviação. Os Irmãos Orville e Wilbur Wright, da classe trabalhadora, desenvolveram o avião como um produto, tudo registrado e patenteado para ganhar dinheiro, enquanto nosso playboy mineiro, filho de um dos maiores cafeicultores da época, nunca submeteu uma patente, e o segundo avião da história, o Demoiselle de Dumont, foi montado centenas de vezes por entusiastas e impulsionou o nascimento da aviação, diferente dos irmãos que passaram a vida lutando batalhas legais sobre patentes e nunca produziram nada significativo.
E é nessa grande vitória do povo brasileiro que aparece a questão central deste texto: o que nos permitiu a homérica libertação da ditadura da gravidade foi a possibilidade de um desenvolvimento em comunidade, livre das amarras de interesses econômicos e individualistas. Essa tradição de livre ciência foi claramente esmagada pelo modelo de produção capitalista, mas curiosamente ganhou uma nova casa na computação, com a famosa ideia de “software livre” ou “open source”. Vamos falar um pouco sobre isso?
Segundo a definição surpreendentemente bem resumida do Wikipedia:
“O movimento software livre é um movimento social, com o objetivo de obter e garantir certas liberdades para usuários de software, ou seja, a liberdade de executar o software, para estudar e modificar o software, e para redistribuir cópias, com ou sem alterações. Embora com base em tradições e filosofias entre os membros da década de 1970 da cultura hacker, Richard Stallman fundou formalmente o movimento em 1983 com o lançamento do Projeto GNU. Stallman fundou a Free Software Foundation em 1985, para apoiar o movimento.”
Borbulhava na época um sentimento de emancipação do sistema, uma terra sem lei onde a informação circularia livremente, longe do controle de governos e corporações, tudo num ambiente descentralizado, quase que uma cyber-democracia. Sentimento parecido com a onda iniciada pelo bitcoin e a web3.0, mas ao invés dessa massa de coaches e liberalecos tentando ficar ricos com NFT, o movimento se alimentou de fortes influências dos movimentos anarquistas/comunistas e, de forma mais geral, da contracultura.
Não seria exagero nenhum afirmar que o mundo moderno é construído em cima do resultado desses movimentos. Para ilustrar, aí vão alguns projetos que integram boa parte do mundo moderno e são open source:
- Python — Simplesmente a linguagem de programação mais usada no mundo, ela não só é open source como é argumentável que no começo ela não tinha nada de especial a não ser sua facilidade em se aprender e utilizar, porém, essa característica atraiu a muitos e essa comunidade gigante produziu uma infinidade ferramentas para livre uso. Hoje ela domina as áreas de ciência de dados e aprendizado de máquina.
- Linux — Concorrente do Windows e MacOS, o único dos três grandes sistemas operacionais a ser distribuído gratuitamente e de código aberto. Mais do que isso, os outros dois dominam os computadores para uso doméstico, mas o Linux domina basicamente tudo que não é de uso pessoal: servidores, indústrias, infraestruturas de nuvens e muitos programadores o utilizam para trabalhar.
- Apache HTTP server — O servidor web mais usado no mundo. Entre 20 e 30% dos sites rodam com ele.
- MySQL — Um dos mais usados sistemas de banco de dados do mundo — e basicamente tudo que você utiliza tem um banco de dados por trás.
- Mozilla Firefox — Um dos browsers (navegadores) mais populares desde seu lançamento em 2004.
Dito isso, este poderia ser um parágrafo do tipo “se você usa X coisa deveria agradecer ao software livre”, mas a verdade é que não depende de utilizar X, Y ou Z: se você utiliza qualquer coisa criada nos últimos 20 anos, provavelmente ela foi possibilitada, facilitada ou é ela mesmo um produto open-source. Uma bela patada no pessoal do “não existe almoço grátis”.
Parece utopia, né? Pode ficar tranquilo: não é. Este texto, na verdade, começou com a ideia de conversar um pouco sobre alguns problemas que existem no meio, como a enorme pressão para participar de um projeto de software livre para compor currículo, o que vai contra a ideologia do movimento e vira mais uma forma das empresas explorarem trabalho barato. O título, inclusive, seria “Open source: Armadilha capitalista ou utopia anarquista?”.
Mas este não é um texto qualquer. Ele é o último da editoria de Ciência e Tecnologia da Revista Brado.
A Brado nasceu em tempos sombrios, com uma pandemia balançando as estruturas do mundo e nosso país à deriva, com um governo que fez faltar palavras para descrever os seus absurdos. Mesmo assim, nunca acreditei que seria o fim do mundo. Talvez eu seja mais otimista do que deveria e, portanto, faz todo sentido fechar as cortinas com uma mensagem de esperança, um exemplo prático de que o mundo pode ser diferente, que apesar dos trancos e barrancos, apesar dos passos para trás, apesar de um sistema socioeconômico baseado fundamentalmente no egoísmo e na ganância, apesar disso tudo é possível apostar no lado bom do ser humano, na gentileza, na preocupação com os outros, na empatia e acreditar que as coisas vão se ajeitando com o tempo.