Os párias também sofrem

A saúde mental nos campos de concentração modernos

Lucas Kalil
Revista Brado
5 min readSep 29, 2021

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Foto: Donald Tong/Pexels

A campanha do setembro amarelo é uma iniciativa louvável, pois alerta as pessoas sobre sintomas de ansiedade e da depressão, para que elas busquem cuidar de si mesmas e dos outros, procurando, para tanto, ajuda profissional. Pretende-se, com isso, remediar mazelas mentais para não atingir o trágico fim da existência humana: o suicídio.

Dentre todas as falhas da campanha, a não discussão do tema voltado para a população carcerária do país é bastante lamentável. Talvez a parcela mais vulnerável de nossa sociedade, que se vê privada de tantos direitos, encontra-se também privada da devida assistência psiquiátrica e excluída da discussão que deveria olhar a todos indistintamente.

Isso se deve à cultura punitivista enraizada na sociedade brasileira e endossada pelo racismo — dado o perfil dos brasileiros encarcerados, formado majoritariamente por pardos e pretos (46,2% e 17,3%, respectivamente)— que vê no transgressor da lei um ser monstruoso que deve sofrer a cada minuto. Soma-se a isso a ainda vigente estigmatização da depressão — inclusive dentro da própria medicina — que dificulta, até mesmo na sociedade fora dos presídios, o êxito na discussão do setembro amarelo. Assim, trata-se de tema duplamente renegado, que quase nunca é abertamente debatido no âmbito do cárcere. A necessidade da abordagem do assunto, no entanto, é urgente.

Um dado relevante para entender a importância do tema é o trazido pelos pesquisadores do artigo “O impacto da prisão na saúde mental dos presos do estado do Rio de Janeiro, Brasil”: 10 a 15% dos privados de liberdade apresentam doenças mentais graves, enquanto esse índice na população geral é de 2%.

Além disso, os pesquisadores evidenciam que, na prisão, o estresse excessivo, relacionado à depressão, é manifestação de sofrimento psíquico com reações físicas e emocionais. Assim, indicam que essa resposta orgânica à vivência demasiadamente estressante no ambiente prisional é mais comum entre os novos presos e se relaciona ao maior risco de suicídio na prisão.

A prisão é, por si só, um ambiente de sofrimento psíquico, ocasionado pela sua própria finalidade, que é privar a liberdade do infrator — e somente ela! Os ambientes, muitas vezes insalubres e depredados, as torturas cometidas por companheiros de cela e por funcionários dos presídios, a comida de péssima qualidade, bem como a superlotação e a ociosidade gerada pela falta de trabalho, são fatores que intensificam a punição e extrapolam a restrição de liberdade, impedindo também a dignidade humana dos condenados e não condenados, tendo em vista que 31% dos detentos sequer foram levados a julgamento.

Pode-se dizer que o erro primário é a não realização — em muitos casos — do Exame Criminológico, determinado pelo Código Penal brasileiro em seus artigos 34 e 35, e pelo art. 8° da LEP (Lei de Execução Penal). Igualmente problemática é a não avaliação do condenado pela Comissão Técnica de Classificação, prevista no art. 6° da LEP. Os referidos exames são feitos inter-relacionando investigações psicológicas, psiquiátricas e sociais do agente, a fim de, por exemplo, deixar separados os condenados mais violentos daqueles com menor periculosidade. Se feitos, mitigariam a relação de diferentes tipos psicológicos de detentos, o que possivelmente geraria menos estresse, tendo em vista os dados já apresentados.

O sofrimento psíquico advém principalmente da exclusão social, da qual grande parte da população carcerária origina-se e onde quase ela toda se mantém. Nesse sentido, o estudo mostrou que, tanto entre os homens como entre as mulheres, os fatores “bom vínculo familiar”, trabalho e “frequente prática religiosa” se mostraram determinantes no combate e prevenção à depressão no cárcere. Esses dados ratificam aquilo que o legislador da Lei de Execução Penal previu, em 1984, como direitos do condenado: direito ao trabalho, à aproximação familiar e à assistência religiosa.

Assim, tendo em vista que o Estado criminosamente não garante integralmente tais direitos (entre inúmeros outros), cabe a nós, sociedade, reclamar os direitos daqueles que estão sem sua liberdade — e sem sua voz –, a fim de lhes garantir o mínimo de dignidade, por meio, inclusive, da assistência à saúde mental.

Não digo com isso, diferentemente do que uns podem achar, que devemos “levar (o criminoso) para casa e cuidar”, mas tornar o cumprimento da Pena Privativa de Liberdade, que deveria privar somente a liberdade do agente, humanizada. Afinal de contas, a humanização da pena é princípio basilar no Direito Penal de um Estado Democrático de Direito. Por mais desumano e mais indigno que tenha sido o crime cometido, o infrator não deixa perde a qualidade de ser humano, nem de cidadão. A ele, portanto, devem ser garantidos todos os direitos relacionados a saúde e, logo, à dignidade humana, como asseguram as leis deste País.

Com esse objetivo, foi instituído em 2003 o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP), através de portaria conjunta dos Ministérios da Saúde e da Justiça. Pretendia-se incluir os condenados a Penas Privativas de Liberdade (PPL) no SUS (Sistema Único de Saúde), levando às unidades prisionais ações, serviços e profissionais de saúde. Apesar disso, até 2016, apenas 37% das penitenciárias brasileiras com módulos de saúde eram ocupadas por equipes de saúde, como expõe o artigo Demografia, vulnerabilidades e direito à saúde.

Atividade terapêutica em grupo com internas do Complexo Penitenciário de Pedrinhas/MA. Foto: Reprodução/Secretaria de Administração Penitenciária

Em outro artigo, intitulado A saúde mental de infratores presos numa unidade prisional da cidade do Salvador”, a psicóloga Maria Thereza Ávila expõe que dificilmente os encarcerados recebem adequada assistência à saúde mental, pois não há reconhecimento de suas necessidades por parte dos funcionários dos presídios, que encaram as mudanças de comportamento como problemas disciplinares.

Assim, muito embora a LEP e o PNSSP prevejam a assistência à saúde do custodiado, pouco se vê, na prática, a concretização desse direito, sobretudo no que se refere à saúde mental. Isso em razão dos baixos investimentos dos poderes executivos estaduais nos setores especializados de saúde penitenciária, bem como da falta de treinamento dos agentes penitenciários para identificar comportamentos psíquicos anormais nos detentos.

O nosso ordenamento jurídico proíbe a pena de prisão perpétua. Logo, chegará o momento no qual o detento, se não for acometido pelo suicídio, passará a ser egresso do sistema penitenciário. Assim, indaga-se: em que condições psicológicas esse cidadão retornará à sociedade?

A mesma psicologia que outrora servira a formas de controle social, como eternizou Michel Foucault em “Vigiar e Punir”, serve hoje, como ferramenta para mitigar o mal causado. Assim sendo, tanto numa perspectiva moral como legal, devemos reivindicar o direito à saúde de nossos concidadãos e falar por aqueles que não têm voz. Afinal, dois grandes objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, constantes no art. 3° da nossa Constituição, são:

“I — Construir uma sociedade livre, justa e solidária;

IV — Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Cabe a nós, portanto, fazer do setembro amarelo muito mais que uma campanha esporádica e limitada a emojis de fita amarela nas redes sociais. Os párias também sofrem, também têm famílias e, sim, também têm direitos.

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Lucas Kalil
Revista Brado

Estudante de Direito e de Filosofia, colunista de Justiça da Revista Brado, além de eterno admirador e crítico da vida