Os Yanomami e Claudia

Vida e luta de quem desafia a burrice do Estado

Giovanna Mont'Mor
Revista Brado
4 min readJul 15, 2021

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Autorretrato, 1974/Acervo Claudia Andujar

“Eu não quero chorar de medo. Todos os dias tenho chorado de medo”, diz em entrevista Darlene Yanomami, “Sem esperança de quando a segurança vai chegar e por isso precisamos das forças dos policiais. Estou aqui pedindo socorro para proteger as mulheres e crianças”. Ela vive em Palmiú, no coração da Amazônia, dentro da Terra Indígena Yanomami, que com seus quase 10 milhões de hectares tem sido desde maio palco de sucessivos ataques com tiros e bombas dos garimpeiros.

Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), estima-se que haja cerca de 20 mil garimpeiros somente na TI Yanomami, mas não é de hoje que os donos dessa terra enfrentam tamanha ameaça. Na década de 1970, durante a construção da rodovia Perimetral Norte, é estimado o extermínio de pelo menos 2 mil indígenas dessa etnia, segundo a Comissão Nacional da Verdade. Foi nesse contexto que os caminhos de Claudia Andujar e do povo Yanomami se imbricaram.

Mulher, fotógrafa, artista visual, ativista da luta indígena. Claudia Andujar, a suíça que se naturalizou brasileira, é a mulher que “desafiou a burrice do Estado brasileiro”, como diz seu amigo Ailton Krenak, na abertura da exposição Luta Yanomami no Instituto Moreira Salles em 2018.

Próximo ao rio Catrimani, 1974. Foto de © Claudia Andujar

Judia e sobrevivente da Segunda Guerra, perdeu toda a família paterna nos campos de concentração de Dachau e Auschwitz. Conseguiu escapar com a mãe para a Suíça e viveu também em Nova York durante a juventude, até chegar ao Brasil em 1955, para nunca mais partir.

Tendo passado quase toda vida em condição de estrangeira, ao chegar no sul global, iniciou expedições fotográficas pelo Brasil e América Latina. Até o desenvolvimento de seus trabalhos mais autorais, Claudia trabalhou em algumas revistas, mas também enfrentou dificuldades para publicar, alcançando mais reconhecimento a partir do contrato com a extinta revista Realidade, da editora Abril.

Foto de Lew Parrella, 1961/Acervo Claudia Andujar

Reivindicar o olhar e o espaço feminino na fotografia não passa imune ao fato de que em sua origem o fotojornalismo era tido como função masculina, justificada pela menor força física das mulheres, considerando o peso que tinham os equipamentos fotográficos. No entanto, mesmo com o surgimento de equipamentos 35mm, mais compactos e leves, a situação não mudou. “Vi que no Brasil não dava, na época, para trabalhar numa revista. Por ser mulher, não se interessaram”, diz Claudia em conversa com o curador Thyago Nogueira.

Em uma das pautas da Realidade, foi levada para fotografar uma série especial dedicada à Amazônia. Era época da construção da Transamazônica. “Quando fui fotografar, estavam desmatando muito, um desastre. Mas o governo brasileiro permitiu. Na época, se dizia que era preciso ocupar a Amazônia, um lugar vazio que precisava se desenvolver”. É durante esse trabalho que o encontro entre Claudia e os Yanomami acontece.

Claudia Andujar sendo pintada por uma índia Yanomami, na aldeia próxima ao rio Catrimani, em RO. Reprodução: Revista Trip/Acervo Claudia Andujar

Logo após a publicação da edição, por questões políticas, toda a redação da revista, incluindo Claudia, foi demitida. Andujar decide então não mais trabalhar com fotojornalismo para se aprofundar na questão dos Yanomami, etnia à qual ela dedicou sua vida, ativismo e obra.

Davi Kopenawa, xamã e liderança indígena Yanomami, diz que Claudia deu a ele arco e flecha. Não para matar branco, “é arco e flecha para falar. Voz. Falar pela boca. Assim que ela me ensinou. Assim que eu aprendi para poder defender o meu povo Yanomami”. Ela viveu junto com os Yanomami durante sete anos, testemunhando os conflitos com os garimpeiros, os ataques violentos sofridos pelos indígenas, o rastro de doenças e destruição na floresta em prol de um ideal de desenvolvimento antiambientalista e etnocida que remonta principalmente aos tempos da ditadura — e ainda hoje encontra defensores no Estado brasileiro.

Catrimani, Roraima, 1974. Foto © Claudia Andujar

Nas fendas de uma história marcada pela guerra, ela, que sempre foi uma permanente estrangeira, se articulou para denunciar ao mundo o que acontecia no território dos Yanomami. Escreveu manifestos, divulgou sua fotografia. Tornou sua arte o instrumento de luta de um povo em guerra. Em suas fotos, quase como a expressão de uma relação simbiótica — com uma recusa ao exotismo tão presente nos registros dos indígenas — , apresenta a vida e luta de fotógrafa e fotografados, companheiros na eterna luta de desafiar a burrice de um Estado.

Filme infravermelho, Catrimani, Roraima, 1976. Foto © Claudia Andujar

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Giovanna Mont'Mor
Revista Brado

Estudante de Comunicação, instrutora de Yoga, interessada em Cinema, Literatura, Política e Cultura Visual.