Pária internacional: o legado de Ernesto Araújo

Sob o pior chanceler da história republicana, séculos de diplomacia estão sob ameaça

João Pedro Sabino Frizzera
Revista Brado
7 min readApr 7, 2021

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A pandemia do novo coronavírus no Brasil, que completou um ano no começo do mês de março, já ultrapassou a triste marca de 330 mil mortos e mais de 13 milhões de contaminados, tornando-se assim a maior crise sanitária de toda a história do Brasil, bem como a maior tragédia humanitária dos últimos 100 anos de história nacional. Caso o ritmo atual não seja freado, pouco impede que a Covid-19 se torne a maior crise humanitária de toda a história do país.

Dito isso, não tenho como intenção para este texto analisar, comentar ou reverberar essa trágica marca, que já foi muito bem explorada em editorial recente. Aqui, abrirei a discussão sobre a forma com a qual a diplomacia brasileira, cuja função é ser um instrumento para auxiliar o Estado, se viu incapaz de reagir e até impedir uma catástrofe maior por conta do desmonte da máquina pública sob a administração do agora ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo.

O então Ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, durante uma entrevista coletiva no Palácio do Itamaraty, em Brasília. Foto: Adriano Machado/Reuters/Arquivo

Nos últimos meses, a expressão “pária internacional” vem sendo utilizada pela mídia e por internacionalistas para descrever a postura do Estado brasileiro em meio à crise internacional e nas relações internacionais em geral. Mas, afinal de contas, o que ela significa exatamente e por que ela se encaixa no caso do Brasil?

Para começar, “pária” é um termo de origem indiana usado para descrever os indivíduos que vivem à margem da sociedade, tendo pouco ou nenhum contato com os demais indivíduos. No contexto internacional, um “Estado Pária” é qualquer país que decide, por alguma razão, isolar-se voluntariamente do contato externo, ou qualquer país que possui comportamento repudiado por boa parte dos países e das organizações internacionais, o que torna difícil qualquer interação ou contato com nações desse tipo.

Infelizmente, não é exagero afirmar que o Brasil vem se aproximando dessa definição, uma vez que a política externa do país passou a ser guiada pela noção do “antiglobalismo”, o que implica, basicamente, no esfriamento das relações com o exterior para desarticular os efeitos da globalização sobre o país, que são vistos negativamente por seus adeptos. O objetivo dessa postura, paradoxalmente, não parece ter sido de buscar benefícios ao Estado, mas meramente mobilizar os apoiadores do governo internamente em sua defesa. Em outras palavras, o Itamaraty serviu, nessa concepção, como um instrumento para agradar os defensores do presidente como forma de garantir sua lealdade, mesmo que isso signifique contrariar os interesses do próprio país.

E foi em convergência do agrado da massa apoiadora do presidente Bolsonaro que o Brasil pautou sua política externa no desprezo pelo multilateralismo e suas instituições, o abandono do universalismo e a rejeição da integração regional. Como justificativa para isso, não é incomum ler que tudo não passa de “coisas de globalistas, comunistas e anticristãos”. Na verdade, tudo o que Araújo e Bolsonaro querem é uma diplomacia simplesmente contrária aos princípios defendidos pelo Estado brasileiro desde pelo menos a Primeira República, pois a necessidade de criar inimigos imaginários e alimentar seus apoiadores com teorias da conspiração para manterem o poder é maior que a de encarar a realidade.

Como era de se esperar, uma diplomacia que é pautada no surreal é fadada a colecionar derrotas. Exemplo disso foi o fracasso de Donald Trump na corrida presidencial no ano passado, que contou com apoio aberto do governo brasileiro, representando assim o fim de dois anos de relação especial entre os dois governos, mas não entre os dois países. A aproximação dos dois, no fim das contas, não gerou grandes benefícios ao Brasil em relação às perdas do mesmo período, tratando-se meramente de uma aproximação de líderes de governo, mas não de Estados.

Jair Bolsonaro e Donald Trump no Roseiral da Casa Branca em março de 2019. Foto: Kevin Lamarque/Reuters

Houve também a decadência crescente da reputação do Brasil nos países vizinhos, que não tinham mais como contar com o país para encontrar soluções conjuntas, bem como entre parceiros comerciais na China e na Europa. Sobre a última, a desastrosa política ambiental do governo brasileiro foi o ponto-chave para que muitos países desse continente abandonassem o Tratado de Livre Comércio entre Mercosul e União Europeia, finalizado em 2019, que se fosse para frente teria criado nada menos que a maior zona de livre comércio do mundo. Sobre a China, as relações com esse país nunca estiveram tão baixas por conta da paranoia de Araújo, bastando se lembrar de como o ministro utilizou o termo “comunavírus” para afirmar que toda a pandemia não passava de um plano chinês.

Por fim, até mesmo na questão das vacinas Ernesto Araújo se mostrou incompetente, pois tentou barrar a adesão do Brasil no consórcio Covax, que facilita a distribuição mundial de vacinas, pelo simples fato de que não desejava o fortalecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Como estudante de Relações Internacionais, me impressiona a rapidez com que tudo isso aconteceu e me assusta saber que nosso país, que ao menos podia se orgulhar de sua postura internacional, conseguiu o feito inédito de atrair a desconfiança, a preocupação e até a repulsa dos três principais centros políticos e econômicos do planeta: EUA, China e União Europeia. Sem a cordialidade dos principais atores do Sistema Internacional e dos vizinhos, o governo precisa se contentar em apresentar pequenas vitórias ao se aproximar de nações marcadas pelo despotismo ou autoritarismo, como Israel, Hungria e Polônia. Mesmo assim, isso não deixou de acontecer sem constrangimentos: como esquecer a “comitiva científica” a Israel, que não contou com um único cientista e que precisou ser advertida para usar máscaras?

Quais as possíveis consequências de todo esse fracasso? Nas relações internacionais, impera um princípio chamado de ausência do “vácuo de poder”, isto é, dificilmente uma determinada “função” deixará de ser exercida se houver necessidade dela existir. Isso significa que o Brasil, ao perder sua reputação de bom “jogador”, não terá mais a chance de exigir mudanças e reformas no sistema internacional, que visam a criação de uma comunidade internacional mais justa e equilibrada, como havia fazendo a décadas. Sem a possibilidade de barganhar através do discurso, o que chamamos de soft power, a diplomacia terá dificuldade em interagir no exterior, podendo levar anos para recuperar sua imagem.

Curiosamente, esse mesmo princípio serve contrariamente ao governo Bolsonaro: Sua atitude de minar as relações do Brasil com o exterior abriu o precedente para que outras entidades, de dentro do Brasil, exercessem o papel de liderança e representação internacional. O caso mais claro dessa “fragmentação” da diplomacia foi na busca por vacinas, onde governadores e prefeitos tomaram um protagonismo inédito na política de imunização, mesmo sem qualquer incentivo do governo federal, e até o Senado Federal se antecipou ao governo na tentativa de negociar com os EUA.

Indubitavelmente, estamos passando pelo pior momento no relacionamento internacional do Brasil desde os anos finais da ditadura militar. O Brasil está, sim, se tornando um Estado Pária, e se em breve não tomarmos outro caminho, nos juntaremos ao rol de nações como a Coreia do Norte, a África do Sul na era do Apartheid e o Afeganistão sob o Talibã. Ler o nome “Brasil” em uma lista dessas já nos diz tudo o que precisamos saber sobre o quão longe do aceitável nos encontramos.

Ministro Carlos França, que está à frente do Itamaraty desde o dia 29 de março. Diplomata considerado de pouca expressão dentre o corpo diplomático, mas com postura reconciliadora, agora tem a difícil tarefa de fazer o controle de danos na diplomacia brasileira. Foto: Marcos Corrêa/PR

Não é um motivo de orgulho ser considerado pária, como sugeriu o ministro uma vez, mas sim de vergonha. É passada a hora de rumarmos em outra direção, que não envolva mais a ignorância ou a estupidez. Por sorte, a idiocracia de Ernesto Araújo conheceu seu fim pouco antes da finalização deste texto, mas não antes de afundar parcialmente o ministério após mais de dois anos de desserviços que contribuíram para o aprofundamento da crise no Brasil.

É de se esperar, de forma otimista, que o novo ministro Carlos França ponha a diplomacia do país de volta aos eixos e resista às pressões pela radicalização. Em seu discurso inaugural do dia 6 de abril, França falou de “desenvolvimento sustentável”, “diplomacia da saúde” e demonstrou uma posição conciliadora com os antigos rivais de Araújo. No entanto, é melhor ser cauteloso e não lançar mão de qualquer especulação sobre sua gestão, pois o componente central dessa desastrosa política externa, o presidente Bolsonaro, continua em seu cargo, e pouco indica que este deseje tomar alguma atitude de mudança. Só o tempo dirá qual caminho tomará o Brasil nesse momento.

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João Pedro Sabino Frizzera
Revista Brado

Estudante de Relações Internacionais pela Universidade Vila Velha | Colunista de Política da Revista Brado.