Pela fala dos tambores

Oh velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.
Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!
(João José Craveirinha — Quero ser tambor).

Gabriel do Nascimento Barbosa
Revista Brado
3 min readOct 6, 2021

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Carrying the Atabaque, por Caoeira4refugees/Creative Commons

Se este texto fosse sobre conceitos musicais de percussão, provavelmente eu teria muito pouco a dizer e contribuir. Mas falar de tambor sempre é mais do que falar de um instrumento musical. O poema de Craveirinha, poeta moçambicano, que abre este texto, já permite compreender que o tambor é algo além: o tambor, quando toca, fala.

É interessante perceber isso no sentido de que os graves, dentro de uma perspectiva musical ocidental, não detêm um lugar privilegiado. Não é estranho que as pessoas ouçam o contrabaixo ou os tambores como instrumentos auxiliares da marcação, e não com liberdade própria e criativa dentro dos arranjos.

A performance marcante dos graves fica concentrada, segundo um professor e amigo que acompanho, em melodias que incorporam, eu seu nome, adjetivos étnicos como música Afro.

Grande parte disso deve-se à própria materialidade que a música possui quando ela passa a habitar o ambiente doméstico. As frequências captadas pelas primeiras tecnologias de reprodução de áudio não abrangem o grave. Qualquer gravação do YouTube com músicas dos anos 30, para lembrar a era de ouro do rádio, é toda feita pelos agudos. Ouçam Noel, para ficar em clássico, e vejam como faltam os surdos que são tão marcantes nas rodas e escolas de samba.

Acontece que a herança cultural brasileira diaspórica lê a musicalidade de outro jeito. O tambor, dentro dos cultos afro-brasileiros, é cuidado, alimentado e serve como voz de comunicação da liturgia. Ele marca momentos, indica ações, convida entidades.

Servem tanto como arranjo e harmonia, um conjunto completo e orquestrado, que no candomblé são 3. Houve, então, na indústria de massas, o retorno do grave ao ritmo que nasceu nos terreiros, com o avanço de tecnologias de gravação. É relevante, diga-se de passagem, a relevância do Olodum como grupo que faz melodia, essencialmente, com a percussão.

Se o grave foi devolvido aos ritmos da diáspora com o avanço da tecnologia, na música performada, enquanto espaço de acontecimento coletivo e social, ele nunca saiu do meio dos povos que o trouxeram. O tambor está na escola de samba, no congo, nos festejos, nas festas da Casa de Mina. Só na escola de samba são três surdos, e um dedicado, ao menos na minha escola, a trabalhar o suingue nos intervalos dos outros dois. Três surdos com afinações diferentes que criam um arranjo e identidade da escola na avenida.

Há, nessa concepção de tambor, e é esse o intuito do texto, uma forma diferente de ver e sentir a musicalidade. Nem melhor, nem pior, mas que possibilita outras iniciativas e percursos. Que foi apagado na indústria cultural, manteve-se firme nas mãos de seus instrumentistas, e sobrevive. Sobrevive, é bom dizer, porque está além da compreensão de música trazida da Europa.

Dizer que tambor fala não é falar, simplesmente, das suas possibilidades melódicas, mas da comunicação ritualística que a própria existência do instrumento compreende. Onde ele toca, há um significado. Muitos podem não compreender, mas, como diz Luiz Antônio Simas, tem escola de samba entrando na avenida tocando um aguerê de Oxossi, trazendo todo um marco ancestral de existência. Que nossos tambores nunca se calem!

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Gabriel do Nascimento Barbosa
Revista Brado

Historiador de formação e produtor cultural na área de literatura. É colaborador da Revista Brado e acha estranho apresentar a si mesmo.