A cerveja holandesa e a escritora capixaba

Aos 82 anos, Bernadette Lyra está finalizando um novo livro

João Vitor Castro
Revista Brado
9 min readJun 6, 2021

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Foto: Gelson Santana

Chovia. Chovia muito, diga-se de passagem. Pela Rua Sete de Setembro, no Centro de Vitória, corria uma torrente horizontal que sacudia as calçadas como numa disputa. Pequenas ondas eram produzidas no asfalto estreito naquele curto temporal de dezembro. Lá dentro, na Casa da Stael — uma coisa meio mística que é casa e ao mesmo tempo ateliê e exposição, que funde o privado e o público — eu arrumava os fios embaraçados do computador com minha namorada. Havíamos terminado há pouco uma oficina de rádio para um projeto educativo-cultural do professor Orlando Lopes.

Foi nesse momento, em meio ao temporal, que entrou — incrivelmente seca, ainda invejo o guarda-chuva que devia usar — uma senhora sorridente. Cabelos brancos curtos, era acompanhada por uma moça mais jovem e já chegou aos cumprimentos e sorrisos. A cada uma foi entregue uma long neck de cerveja holandesa e as gargalhadas eram altas e sinceras.

Assim começou nosso encontro, como todos os bons encontros: chuvoso, sorridente e com cervejas holandesas. Após um breve lapso de memória, me dei conta.

— Vê se reconhece.

— Quem?

— Aquela senhora. Não me é estranha. Acho que é a Bernadette Lyra. É uma das escritoras mais reconhecidas do estado.

Como um bom bisbilhoteiro, fiquei de olho na conversa alheia. Até que citaram seu nome e minha tese foi comprovada. O carro havia chegado.

Nos despedimos de quem nos conhecia e aproveitamos para convidá-la ao nosso programa na Rádio Universitária, o Sopa de Letras. Solícita, aceitou. Sua assessora, Lívia, nos convidou ainda para o lançamento de seu próximo livro, Guananira (Maré e A Lápis, 2019). Seria num bar a algumas ruas dali, o nosso favorito. Dois coelhos.

“Mesmo que não tenha nada para dizer, eu escrevo”.

O lançamento aconteceu e combinamos que o programa seria no março seguinte, quando a rádio reabriria após reforma. Março veio e com ele a pandemia da Covid-19. Vamos esperar mais algumas semanas, pensamos. Mas o programa só aconteceu em dezembro, após um ano do lançamento de Guananira — e mesmo assim remotamente, por telefone, como a de agora. Deixemos então de lado o meu passado, e foquemos no dela.

Bernadette aos 17 anos. Foto: Assessoria de Imprensa

Bernadette Lyra nasceu em Conceição da Barra, norte do Espírito Santo, em 1938. Sua família não tinha posses, mas lhe ofereceu o primeiro contato com a literatura. O avô, “um homem antigo”, era autodidata. Lia em francês e espanhol sem nunca ter estudado e ficou em segundo lugar em um concurso para a letra do hino do estado. Foram seus livros, da bonita estante de porta de vidro, que ela passou a devorar após aprender a ler, sozinha, aos 5 anos. “Às vezes não entendia nada, mas eu lia assim mesmo”.

“Esse meu avô era um mulato filho de uma mulata filha de uma ex-escrava. Eu tenho essa linhagem e tenho muito orgulho dela”. Ele era quitandeiro também. Debaixo da mesa da quitanda é que a pequena Bernadette lia seus escritos e criava histórias em cima daquilo, para contar aos colegas da escola. Não surpreende, portanto, que desde os 7 anos ela criasse histórias escritas — até peça de teatro, que as traças levaram. “A única coisa que eu sei fazer muito bem é escrever, é contar histórias, fazer ficção. Isso eu faço bem”.

“Sou uma escritora de fôlego curto”.

Mas havia um problema: Conceição da Barra não tinha nem o segundo grau, e Bernadette queria estudar. Aos 12 anos, então, meteu-se num navio, “uma casquinha de noz”, e em dois dias chegou na capital. “Sempre pensava: ‘a capital deve ser maravilhosa’, sonhava com isso. E eu sou apaixonada por Vitória”. Aqui, ficou internada no Colégio do Carmo, graças a enorme sacrifício financeiro do pai, pois não tinha família na cidade.

Foi lá que começou a desenvolver a escrita, com uma professora rígida com a linguagem, que parecia cobrar mais dela, a única da turma que tirava de 7 pra cima. Outro que a ensinou nessa fase foi o escritor e folclorista Guilherme Santos Neves — um dos mais emblemáticos sobrenomes das terras de cá. Foi ele quem disse: “Menina, você é uma escritora”.

Esse é figurinha repetida. Ela lembra com carinho que foi ele quem levou suas primeiras crônicas para serem publicadas n’A Gazeta, quando lhe dava aulas, dessa vez já no curso de Letras, na Ufes. Um caminho sem volta.

“Eu escrevo porque eu preciso escrever pra viver”.

Foi lá, por sinal, que a escritora se aposentou anos mais tarde — não como escritora, é verdade, mas como professora. Se aposentou entre aspas: ainda dá aulas na federal. Agora não, mas por culpa integral do vírus que a tirou da sala — temporariamente, bate o pé. Na pós-graduação de Comunicação ensinará, se já possível no segundo semestre, sobre cinema queer. “Eu gosto muito dessa coisa que anda na contramão”.

Paris, 1988. Foto: Assessoria de Imprensa

E como gosta. “Uma vez eu voltei da França e vi na televisão que tinham censurado alguns livros brasileiros. Aí eu fiquei pensando: ‘quem será?’. Aí quando falaram os nomes eu tava no meio. Era o Aqui começa a dança (1985)”. Mas o tiro saiu pela culatra: “Você sabe o que aconteceu depois? O livro esgotou! E eu saí dando palestra, fui convidada por tudo quanto é universidade pra falar sobre a censura”.

“[A censura] foi uma experiência que ao invés de ser traumática foi deleitosa, porque me projetou”.

Na França, por sinal, não estava a passeio — ou poderia estar, essa não é a questão. O ponto é que antes de ser censurada, em 1991, por umas senhoras tão metidas, tão de nariz em pé e tão malvestidas do Ministério da Educação — palavras suas — , a professora aposentada saiu em viagem. Rio, São Paulo, Paris… Hoje Bernadette mora em Vitória e, segundo ela, só sai agora a passeio. “Achei o meu porto seguro”. Mas já era pós-doutora pela Universidade de Sorbonne quando seu livro foi chamado de pornográfico e retirado das livrarias. “Eu virei a Hilda Hilst”, ironizou aos risos no telefone, “mas o meu livro não tinha nada disso, ele era inocente… mas eu fiquei muito honrada”.

Não foi seu primeiro livro. A apreensão de não saber se seus escritos ainda estavam maduros o suficiente para serem encapados a fez ser surpreendida por um prêmio nacional da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) com As contas no canto (1981), publicado pelo filho também escritor de seu professor Santos Neves, Reinaldo.

Lançamento de “As contas no canto”, setembro de 1981. Foto: Assessoria de Imprensa

Em 2020 foi semifinalista do prêmio internacional de língua portuguesa Oceanos por Ulpiana (2019), a única obra capixaba premiada. Perguntei como ela se sente com essa conquista e a resposta foi rápida: “Fiquei igual um pintinho no lixo”.

“Mesmo que não tenha nada pra dizer, eu escrevo”.

Bernadette já havia me contado no final do ano passado que está trabalhando em um novo livro. Ainda não está pronto, nem tem título, mas dessa vez ela soltou um pouco mais. Serão histórias bem absurdas e fantásticas, com vários temas diferentes e presença marcante do feminino — como é de praxe em seus escritos. “Todos eles transitam numa atmosfera meio fantasmagórica, meio surreal”, abafada, de confinamento. “A morte está nos calcanhares da gente, tá muito próxima”.

Bernadette em 1992. Foto: Assessoria de Imprensa

Tem doses da pandemia na escrita, mas não passam de gotículas que encontram a todos os voadores deste vendaval. “Me interessa o assunto e o tempo. A pandemia, essa pressão de exílio e de interior, de isolamento, de morte, esses desmandos todos que nós estamos vivendo”.

É assim que a escritora tem passado pela pandemia: escrevendo muito. Mas ela queria outra coisa: “Eu tô doida pra poder sair, ir ali no barzinho, me sentar, tomar uma bebidinha, jogar conversa fora… eu adoro”. Todos nós, Bernadette, todos nós… Enquanto isso não é possível, tomemos em casa nossas long necks holandesas e cultivemos a esperança, que segundo ela “tá sempre no horizonte, embora ela seja, coitada, uma fadinha verde que já anda meio perdida e balançando, mas a esperança é equilibrista, como cantou Elis Regina”.

“O Brasil tá numa situação tão ruim, tão mal resolvida, tão terrível…”.

Rio de Janeiro, 1987. Foto: Assessoria de Imprensa

O consolo da escritora — e de qual escritor não? — está no bom e velho papel. A receita é antiga. Carrega consigo pelo menos desde o trágico acidente de carro na Praça dos Namorados que lhe roubou, aos 32 anos, Álvaro Guilherme, seu filho. “Carne da minha carne e pedaço de meu coração”, como o descreve em Guananira, sua obra mais recente, foi com saudade dele que escreveu Memória das Ruínas de Creta (1997). “Eu acho que essas ruínas sou eu. São as ruínas de uma mãe que perde seu filho”.

Ao falar de Álvaro, após tantos anos, sua voz ainda embarga, mas se alegra novamente ao contar que o neto a presenteou dando ao filho o mesmo nome do filho que lhe foi tirado. Ela não tem visto o bisneto por conta da pandemia, mas ao ver suas fotos, me conta com serenidade, vê os olhos do filho. E quando a dor aperta, recorre ao papel. “Aquela dor que é impossível nomear e que não cessa nunca, que é a morte de um filho, você pode transformar em coisas pungentes, mas que são criativas, porque não adianta você ficar sentada chorando, porque a vida é só um intervalozinho entre um começo e um fim”.

“A arte é uma fonte de vida. Toda essa pulsão de desejo e erotismo que existe na vida e no humano existe quando você cria arte também, seja ela de que espécie for”.

Uma revelação me chega então em primeira mão: Bernadette, aos 82, tem ventilado a escrita de um livro de memórias. “Talvez eu guarde na gaveta, passe uma chave, e depois quem sabe o que vão fazer com isso”. O bom humor que falta ao mundo, ainda bem que não a falta. Mas sobre aposentar-se do papel, é enfática: “Isso não vai ser possível. Eu acho que eu vou morrer ainda terminando contos. Não esses [do livro em construção]! Ou um romance também, quem sabe? Um romance incompleto…”.

Bernadette Lyra participa de evento em São Paulo. Foto: Assessoria de Imprensa

Pois contemos mais um pouco do que a caberá contar futuramente em seus livros de memórias. Além do já citado, Bernadette Lyra já deu aulas não apenas na Ufes, mas também na USP, na Universidade Anhembi-Morumbi, na UAM, na UTP, na Unip e até na Universidade de Algarve, em Portugal. Não satisfeita, foi secretária de Cultura do Espírito Santo e sócia-fundadora do Comitê Científico da Sociedade Brasileira de Cinema e Audiovisual, além de ocupar a cadeira nº 1 da Academia Espírito-Santense de Letras, ter ganhado as medalhas de mérito cultural Rubem Braga e Renato Pacheco e ter sido escolhida a capixaba do ano em 2014 pelos leitores de A Gazeta.

Sim, é um vasto currículo. E ao ser perguntada sobre o que ainda falta, ela diz que espera outros pontos deliciosos na vida. “Pra mim isso tudo é pontual. Cada coisa que vem chegando é bem-vinda. Então não digo que falta, digo que cada vez que uma coisa dessas acontece comigo é um deleite”.

“Picasso dizia: ‘Eu não procuro, eu acho’. Eu sou assim. As coisas me acham e eu gosto”.

Estátua inaugurada em 2016 na Prainha de Luiza Grimaldi, primeira mulher a comandar uma capitania no Brasil Colônia, teve como base as pesquisas de Bernadette para seu romance “A Capitoa”, de 2014. Foto: Guilherme Ferrari/A Gazeta

O segredo para chegar aos 82 com uma carreira de tamanho sucesso e uma sede por palavras que poucas vezes conheci? Isso ela não contou — e nem sequer eu perguntei. Talvez o bom humor descomunal seja a resposta, ou as tais “partículas preciosas”, aquelas coisas que despertam as sensações que se traduzem em palavras.

Encerramos por aqui, em outra noite de isolamento, com outro livro entreaberto sobre a estante, à espera do momento em que poderemos nos esbarrar por aí novamente, em outros encontros produtos do imperioso acaso e abastecidos por outras long necks de cervejas holandesas.

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João Vitor Castro
Revista Brado

Jornalista, editor-chefe da Revista Brado e autor de “Refluxo” (Pedregulho, 2023).