Por que ler Saramago?

“A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo.” (Trecho do discurso de José Saramago ao receber o Nobel de Literatura em 1998)

Gabriel do Nascimento Barbosa
Revista Brado
3 min readNov 18, 2021

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Fotografia de José Saramago, escritor ganhador do Nobel de Literatura de 1998 ( 1999-Saramago a Siena por Ópera / Creatievecommons.org)

Dia 16 de novembro, terça-feira dessa semana, José Saramago faria 99 anos de idade e, com isso, inicia-se o ano de seu centenário. Em virtude desse fato, tenho dado uma atenção especial às obras que fizeram do autor português um dos laureados com um Nobel de Literatura e gostaria de compartilhar a urgência de ler e lembrar Saramago.

Dono de uma narrativa que não é exagero chamar de total, o escritor consegue dominar com uma competência ímpar elementos que parecem inconciliáveis dentro de um mesmo projeto narrativo. Movido por suas questões humanitárias, elemento que sempre norteou todo o seu fazer, Saramago atacava o mundo com uma ironia desconcertante, dolorida e ácida, mas, nem por isso, deixou de colocar em palavras, por vezes no mesmo livro, toda a condição sublime que está intrínseca ao ser humano.

Em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, obra que serve de exemplo do que foi exposto, a indignação do autor frente à narrativa bíblica se coloca em cada palavra: é no conjunto de escolha de palavras que Saramago desenvolve a angústia de um José pai e não pai de Jesus; desenvolve a culpa que a família carregará por fazer parte dos planos de Deus, onde, segundo o escritor português, estava planejado o assassinato de todas as crianças do sexo masculino de Belém; explora a condição de Maria como mulher, sempre em silêncio e submissa. Todos esses pontos, contados com uma ironia precisa, elaborada de forma solene para revelar o quanto o Nobel de literatura não acreditava que essa história poderia ser a base de algo essencialmente bom.

No mesmo livro, porém, Saramago nos brinda com a relação de Jesus com Maria Madalena. Jesus, em seu ato mais humano, completamente entregue à paixão, promove um momento sublime que mostra, de um jeito transparente, que a condição humana, quando vivida em toda sua potência, pode ser bela e, talvez, só aí, realmente divina, carnalmente divina.

Saramago duvidava do cristianismo e de todas as religiões. Eram elementos demasiadamente reais para quem viveu parte da vida sob o regime fascista de Salazar ou, no caso de sua esposa Pilar, sob Franco. A saída é dobrar a realidade, colocando-a em um tom cerimonioso que ela não merece porque é podre. A humanidade não está nos patamares onde ela acha que está. O ponto do paradoxo dos livros de Saramago é percebê-lo como um cético desconfiado, capaz de desqualificar todas as estruturas que consideramos, como bons ocidentais, os baluartes morais e éticos de nossa existência, e, através disso, só através disso, Saramago sorri por encontrar nessa destruição a humanidade perdida: o elemento humano, elevado, que, de fato, redime a vida.

Não devemos lê-lo pelos prêmios que ganhou, ou não somente por isso. Não somente, também, por ter boas histórias. Não é urgente lê-lo por conta de sua habilidade narrativa. Devemos ler Saramago porque precisamos ser céticos. Desconfiar sem limites de messias salvadores, histórias que escondem mortes de inocentes para a execução de um plano. Narrativas que precisam ser expostas da forma fétida como são e assim, só assim, ver algo surgir no horizonte, ao final da cegueira.

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Gabriel do Nascimento Barbosa
Revista Brado

Historiador de formação e produtor cultural na área de literatura. É colaborador da Revista Brado e acha estranho apresentar a si mesmo.