Prazer, pode me chamar de artista

Uma reflexão sobre as categorizações dos fazeres artísticos de comunidades periféricas

Gabriel do Nascimento Barbosa
Revista Brado
3 min readAug 25, 2021

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Carolina Maria de Jesus (Dominio Publico — Arquivo Nacional do Brasil / Creative Commons)

Dentro da sociedade ocidental, de nossa forma de organização do pensamento e explicação do mundo, encontramos a prática da categorização. O real passa a ser dividido em categorias que representam entre seus objetos e entre si relações de semelhanças e diferenças. Cada categoria é dotada de determinadas considerações de valoração sobre seus compostos. Dito isto, há as categorias de arte (visuais, cinema, arquitetura, literatura, música, dança, etc.) e, por algum critério institucionalizado e consensual é que as peças pertencem ou não a alguns desses grupos e o seu produtor é chamado de artista.

Dizer que existem categorias, critérios, escolhas, consenso, é dizer que algo está dentro de um determinado padrão, e, com isso, acolhe para si o jogo de valores que a categoria comporta, e outra criação não é digna de angariar os apreços dos críticos. O padrão, que está sendo revisto, é de pessoas majoritariamente brancas, hetoronormativas, habitarem esses espaços com criações que demandam um conjunto discursivo formado em escolas de aprendizados brancos e heteronormativos.

Agora já desenhamos uma problemática: o artista padrão, ou seja, aquele capaz de habitar com todos os requisitos o fazer artístico, é uma pessoa dotada de uma visão de mundo específica que cria, em suas obras, os moldes de pensamento e até de superação, tensão e questionamentos presentes dentro da sua esfera social. Uma história contada por um parceiro de profissão a respeito das artes visuais no norte do Brasil ilustra bem essa questão:

Buscando montar uma exposição com a obra de Carmézia, artista indígena Macuxi, o responsável pelo acervo da pintora enviou um texto de abertura que a classificava como arte naif. É uma categoria de arte que, bem resumidamente, busca enquadrar produções onde o valor estético está no exotismo, em uma obra feita sem “conhecimento acadêmico técnico”, mais próxima do artesanato, ou seja, quase uma arte menor.

Foi pedido, frente a esse texto, a produção de um novo com a autoria de outra pessoa. O novo escrito explorava a obra de Carmézia com as reflexões de Davdi Kopenawa e Raoni. Demonstrava o quanto a artista, se apropriando de uma concepção europeia, colocava os valores dos povos originários na sua criação com competência, respeito e profundidade. Carmézia Emiliano chorou ao se reconhecer naqueles apontamentos.

Recentemente, noticiado amplamente pela cobertura da Folha de S. Paulo, entramos nas questões das novas edições de livros escritos por Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de Despejo. Em reportagem do domingo 15 de agosto, ficou evidenciada a relação complexa entre ela e o primeiro editor. O texto do caderno Ilustrada Ilustríssima dá a entender que não houve um interesse, por parte do editor, de publicar outros escritos de Carolina que não fossem relacionados às reflexões sobre a miséria e pobreza no país. Longe de querer demonizá-lo, é inegável que o trabalho editorial soube vender Carolina: o livro foi um sucesso e, atualmente, em uma onda na qual tornou-se lucrativo falar de diversidade, a Cia das Letras investiu nos direitos sobre os escritos da autora.

Carolina foi abraçada pelo mercado por ser lida como exótica, em sua primeira edição. Por mais que tivesse talento e escrevesse materiais de alta qualidade literária em manuscritos que ainda não conhecemos, Quarto de Despejo explorou sua condição de pobreza para ser consumido por leitores do Brasil e do mundo. Hoje, por condições mercadológicas favoráveis, teremos o presente de conhecer mais a autora, todo seu talento. É justo que as discussões sejam para colocá-la como conhecedora de uma estrutura estética digna de ser comparada com qualquer escritor e escritora que tentou, pela escrita, dar conta da própria realidade.

Precisamos dialogar Carmézia Emiliano e Jaider Esbell com as coleções de grandes museus e galerias de forma igualitária em matéria de qualidade de representação. São elaborações de conhecimentos e trajetórias diferentes. A ausência de academicismo sistemático é a força da criação, não seu demérito. É o que a enriquece, mas não como exotismo, e sim como possibilidade narrativa do mesmo real. Ferréz, Jhon Conceito, Julie Dorrico, Daniel Munduruku, Carlos Abelhão e Carolina Maria de Jesus devem ser categorizados pelo que possuem de comum com qualquer criação artística de alto nível: a competência.

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Gabriel do Nascimento Barbosa
Revista Brado

Historiador de formação e produtor cultural na área de literatura. É colaborador da Revista Brado e acha estranho apresentar a si mesmo.