Precisamos refletir sobre a vulnerabilidade de mulheres em situação de prostituição

Mylena Ferro
Revista Brado
Published in
4 min readFeb 21, 2021
Imagem: iStockphoto/Getty Images

Em uma incansável busca de legitimar o trabalho sexual, conservadores e liberais se juntam em um único coro para dizer que as “profissionais mais antigas do mundo”, as mulheres em situação de prostituição, “Fazem porque gostam!”, “Têm outras opções, mas não querem!”, “Gostam de dinheiro fácil!” e que, portanto, têm que ser deixadas à margem da sociedade ou estimuladas a continuar vivendo sua suposta vocação. O que eles ignoram é a realidade absolutamente vulnerável que a maioria dessas mulheres compartilharam desde que nasceram até chegar ao mundo da prostituição — e que quase sempre continuam enfrentando.

De acordo com o artigo Prostitution in Five Countries: Violence and Post-Traumatic Stress Disorder, da Melissa Farley, 70% das mulheres que se encontram em situação de prostituição sofreram abuso sexual ainda crianças e 65% foram estupradas antes dos 15 anos, sabendo, ainda, que 75% dessas mulheres já moraram na rua em algum momento de suas vidas. Mulheres racializadas e pobres são maioria dentre as “profissionais do sexo”: 40% das prostitutas de rua são mulheres negras, sendo 85% das prostitutas sentenciadas em prisão. É preciso dar destaque também às travestis e transsexuais que muitas vezes precisam recorrer à atividade de venda do corpo para sobreviver, já que a sociedade não as acolhe e fecha a porta diariamente em suas caras. Comumente, as mulheres que entram nessa realidade são as que não conseguem encontrar outras alternativas. Uma evidência disso é que mais de 70% dessas profissionais tentam escapar da prostituição, mas não conseguem.

Devemos nos questionar e, sobretudo, questionar os que defendem que “elas fazem porque gostam/querem”, por que será que quanto mais vulnerável socialmente, mais empurrada para a prostituição a mulher é? Devemos nos perguntar também: será mesmo uma escolha ser parte de uma estatística que derruba pela metade a expectativa de vida, que estupra, que violenta e que silencia diariamente?

No processo de vender meu corpo, levei tiros cinco vezes, fui esfaqueada mais de 13 vezes, espancada até ficar inconsciente várias vezes, meu braço e meu nariz quebrados, dois dentes perdidos, perdi meu filho que nunca mais verei, fui abusada verbalmente e passei inúmeros dias na prisão.” (Brenda Myers-Powell, 2008, no artigo “Is Paying for Sex Really Worth It? No. Prostitution exploits many women’s deep pain”).

A venda do corpo — seja com pornografia ou prostituição — é uma fonte infinita de abusos psicológicos, físicos, morais e sexuais às mulheres envolvidas: 95% já sofreram assédio sexual e o número é o mesmo para as que já foram agredidas durante algum atendimento. 75% delas já foram estupradas ao longo do trabalho. Os traumas psicológicos são equivalentes aos físicos: um relatório produzido pelo Comitê Especial de Pornografia e Prostituição do Canadá apontou que mulheres em situação de prostituição possuem níveis de Transtorno do Estresse Pós-Traumático semelhantes aos de veteranos de guerra e que quase 100% delas apresentam quadros de ansiedade aguda, depressão, insônia, irritabilidade, flashbacks, entorpecente emocional e estar em estado de hiperalertância emocional e física.

Foto: Marcia Melo

“O dinheiro age como coerção no trabalho sexual como a força física faz no estupro, portanto a validade do consentimento no trabalho sexual é altamente problemática e, muito provavelmente, nem mesmo é possível”. (Catharine A. MacKinnon, Trafficking, Prostitution, and Inequality).

O trabalho sexual se tornou lucrativo para todo um sistema — que, claro, não inclui as mulheres — ao redor do mundo. O turismo de exploração sexual movimenta bilhões de dólares por ano, assim como os bordéis, casas de prostituição e produtoras de filmes eróticos. Os organizadores desses sistemas são, na maioria, homens que enriquecem ainda mais às custas do estupro pago e filmado, do abuso psicológico e físico de mulheres que, em sua maioria, só querem uma vida digna.

Devemos tomar cuidado ao reproduzir discursos prontos, especialmente os que reforçam ideias meritocratas de livre escolha. Num mundo de desigualdade social gritante, de fome e de misoginia, muitas mulheres não se percebem enquanto sujeitos de escolha — até porque essas escolhas não lhes são apresentadas.

Deixo claro que não me uno ao coro das feministas que marginalizam ainda mais as mulheres que estão nessa situação: condeno esse tipo de trabalho e a necessidade causada pela profunda desigualdade social que faz essas mulheres recorrerem a uma prática tão cruel com elas mesmas, mas me solidarizo com quem está dentro dessa realidade. Entendendo que via de regra isso não é uma escolha — porque se você tem que fazer para ter comida na mesa, não é opcional –, só posso me solidarizar a essas mulheres, lutar e desejar que essa aliança mortífera capitalismo-patriarcado deixe de nos matar, abusar e objetificar diariamente.

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