Qual é a pauta do dia?

A pergunta a ser feita

Anderson Barollo Pires Filho
Revista Brado
6 min readNov 23, 2020

--

Capas de três dos maiores jornais do país. Crédito: Portal Bueno.

Já parou para pensar o quanto você conhece do seu país por causa ou por meio dos veículos de comunicação e informação? O quanto da sua opinião foi formada através de experiências em plataformas como TV, rádio, jornais e redes sociais?

Se a sua resposta for “bastante”, seja vem vindo ao mundo pós-iluminista.

Alinhado às demandas do mundo capitalista — que vive em constantes atualizações –, o que conhecemos hoje como jornalismo surge após a sociedade escolher colocar os fatos, ou seja, a realidade factual, como balizas sociais.

Desse modo, veio o mercado da informação que, em resumo, se encarrega de apurar e narrar de forma objetiva o dia a dia da sociedade moderna, mantendo o público sempre atualizado dos fatos.

No entanto, nos últimos anos, o que se vê são públicos atualizados de fatos diferentes e veículos customizando suas informações para os interesses dos seus públicos.

Na era do imediatismo e da pós verdade, como a imprensa pode cooperar para combater a desinformação e informar de maneira qualificada a sociedade?

Mesmo com a ascensão das redes sociais, cedo ou tarde, o que a especialista em jornalismo Barbie Zeliezer chama de autoridade jornalística ainda prevalece: é ele quem produz uma versão qualificada, confiável e profissional do cotidiano. Crédito: iStock.

Informar não é declarar

Atualmente, boa parte da chamada “grande imprensa” vem pecando sistematicamente no principal ofício da sua atividade: a informação. O que se vê hoje em dia é uma imprensa se preocupando muito mais em declarar do que informar. Sim, há diferenças.

Por ingenuidade ou não, nossos jornais estão se esquecendo que diante de um fato há inúmeras possibilidades de pautas e cabe a nós, profissionais da informação, apurar, entender e elucidar o que tem de essencial naquele fato para a sociedade.

Mas, para não ficarmos só no campo das ideias, vamos exemplificar três momentos recentes em que a imprensa somente replicou declarações ao invés de informar:

“Paulo Guedes quer taxar venda de livros no Brasil”

No mês de agosto, um dos assuntos que pautaram o debate público foi a declaração do ministro da Economia, Paulo Guedes, que disse que “as camadas de menor renda estão mais preocupadas em comprar comida do que comprar livros”.

Guedes também disse que pretende extinguir a concessão de benefícios fiscais para editoras e dar lugar à Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), com alíquota de 12% — ou seja, instituir imposto sobre os livros — através da sua reforma tributária.

A fala do ministro gerou diversas reações nas redes sociais — e não era para menos — e a imprensa escolheu como pauta replicar a proposta de Guedes como um fato que poderia vir a se tornar consumado em breve.

O chamado “super ministro” por muitos apoiadores do presidente também disse que livros são coisas de elite. Se confirmada tal afirmação, poderemos passar a considerar produtos de até R$10,00 como mercadorias nobres. Fotografia: Isac Nóbrega/PR.

Porém, uma vez anunciada a proposta de Guedes, a pauta essencial de interesse público não deveria ser mais a sua fala, e sim o seu desdobramento: a sua inconstitucionalidade.

O Art 150 da Constituição Federal referente à Tributação e Orçamento prevê o seguinte em seu inciso VI: “É vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios instituir imposto sobre (…) d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”.

Portanto, a proposta do ministro, se assim for mantida, não se resolveria com uma “canetada”, pois precisaria passar por uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) discutida e votada em dois turnos em cada casa do Congresso Nacional (Câmara e Senado) e aprovada por 3/5 dos parlamentares de cada casa, para assim vir a se tornar realidade.

Ainda assim, a grande maioria dos jornais não elucidaram esse fato e se preocuparam mais em repercutir uma declaração ao invés de informar.

Privatização do SUS?

No fim de outubro, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto que, no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), previa a “elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada” para construir, modernizar e operar as Unidades Básicas de Saúde (UBS) do país.

O PPI é uma secretaria especial do governo federal que permite a União, Estados e Municípios realizarem parcerias com o setor privado por meio de concessões, Parcerias Público-Privadas (PPPs) e privatizações.

A confusa redação do decreto gerou dúvidas sobre qual seria a nova política do governo em relação à essas cooperações — já que na saúde já existem parcerias com o setor privado por meio das público-privadas, por exemplo.

O decreto também foi assinado pelo ministro da Economia Paulo Guedes e não contou com a assinatura do Ministério da Saúde. Crédito: abrasco.org

Diante disso, o que se esperava da imprensa era que ela questionasse o real intuito do decreto e cobrasse um esclarecimento sobre o modus operandi da sua vigência. Porém, a maioria dos jornais escolheu pautar o assunto como uma espécie de “privatização do SUS”.

Mais uma vez, os jornais perderam a chance de fazer o elementar: questionar, interpretar, checar e informar. Poucos foram os jornais que sinalizaram que não há como o Sistema Único de Saúde (SUS) ser privatizado.

Bastava relembrar ou revelar à sociedade que o Art 196 da Constituição Federal diz: “a saúde é direito de todos e dever do Estado (…)”. Portanto, o direito à saúde constitui direito fundamental e, sendo assim, não pode ser alterado nem mesmo por PEC, já que na Constituição, direitos e garantias fundamentais são cláusulas pétreas.

No pior dos cenários, se o Poder Executivo emitisse tal decreto, o Congresso Nacional ou qualquer ministro do STF derrubaria imediatamente tal decisão e o presidente da República ainda poderia responder por crime de responsabilidade contra a probidade na administração.

Vacina Obrigatória?

Em meio à crise da pandemia do novo coronavírus, frequentemente surge o assunto — capitaneado pelo presidente Jair Bolsonaro — da obrigatoriedade ou não de tomar vacina.

Na insistência de politizar a pandemia, o presidente já disse em diversas ocasiões que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”, e a imprensa segue replicando suas falas em suas matérias.

Entretanto, por ignorância ou perturbação, Bolsonaro se contradiz a uma Lei que ele próprio sancionou em fevereiro de 2020: a Lei “para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”, nº 13.979.

Em sua redação, a regra prevê em seu artigo 3º, inciso III, a determinação de realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas. Isto é, a discussão ou dúvida sobre tal assunto sequer deveria estar em pauta.

É importante ressaltar também que a imprensa já expôs a contradição entre a Lei e as falas do presidente, porém não costuma enfatizá-la e reforçá-la a cada vez que o assunto retorna. Fotografia: Wilson Dias/Agência Brasil.

Menos interesse do público. Mais interesse público.

Se em algum dos casos citados acima você tiver se deparado com uma informação pela qual você não tinha conhecimento, é sinal de que a imprensa falhou em seu exercício.

Na ânsia de noticiar e repercutir o fato, muitas vezes o veículo acaba se rendendo somente aos interesses dos públicos ao invés de fornecer o interesse público. O jornalismo não deve excitar a sociedade, e sim informar— elucidar.

É compreensível os jornais fornecerem o que o seu público quer, entretanto, no mundo de hoje, essa procura já está — supostamente — sendo atendida aos montes nas redes sociais.

Mais do que nunca, precisamos que a imprensa paute majoritariamente aquilo que impacta diretamente nossa sociedade, aquilo que é indispensável para o conhecimento público.

A demanda agora é outra. É retroceder ao seu propósito para avançar em sua atividade. É atrair o público com sua técnica, objetividade e responsabilidade: com seu jornalismo profissional.

É recuperar na memória da sociedade que não é porque você tem “informações” a todo momento hoje em dia que você não precisa do jornalismo. Essa é a maior carência dos dias de hoje. Essa é a verdadeira demanda.

Qual é a pauta do dia? Essa é a pergunta a ser feita.

--

--

Anderson Barollo Pires Filho
Revista Brado

Frames de um pensamento crítico, independente e eternamente desconfortável |Colunista da Revista Brado. Bem-vindo!