Qual a necessidade de enaltecer a enfermagem?

Dar atenção e lutar pelas causas daqueles que cuidam da nossa saúde ressignifica os conceitos de cidadania e empatia para com o próximo e para nós mesmos

Isabela Siyao Chen
Revista Brado
7 min readNov 10, 2021

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Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado

Um dos maiores prazeres de fazer parte de um corpo editorial como a da Revista Brado é a constante constatação de que muito não sabemos, independente de quanto acreditamos saber sobre algo, e uma dessas coisas é a enfermagem. Esse setor da saúde é tão presente e popular que achamos que a conhecemos, até ver que o que sabemos é superficial, e isso se manifesta persistentemente em nossas atitudes e posicionamentos que tomamos diante dos desafios da profissão que se faz extremamente presente, mas insuficientemente valorizada.

Como outras profissões, a enfermagem em si é de difícil definição, uma vez que o tempo faz com que os conceitos sejam cada vez mais complexos, principalmente com o surgimento e desaparecimento de ocupações, de forma que a definição do que esse profissional faz, varia e depende do contexto temporal e social que queremos explorar.

Uma das belas definições, apesar de não ser completa sob o ponto de vista científico, é da enfermeira e fundadora da enfermagem moderna Florence Ninghtingale: “A arte de enfermagem é a mais bela das artes e, considerada como tal, requer pelo menos delicado aprendizado quanto a pintura ou a escultura, pois que não pode haver comparação entre o trabalho de quem se aplica à tela forma ou ao mármore frio, como o de quem se consagra ao corpo vivo”. Por apego às curiosidades, Florence foi uma italiana nascida em 1820 que ficou famosa por seu trabalho em 1854, durante a Guerra da Criméia, quando o exército britânico estava quase sendo derrotado, muito devido às condições e às doenças, como a cólera. Diante da necessidade, Florence foi convidada pelo Ministro de Guerra para ocupar a posição de enfermeira-chefe do exército, que enquanto exercia sua função, constatou que a falta de higiene e as doenças matavam a maior parte dos soldados, desenvolvendo assim um trabalho de assistência aos feridos e organização da estrutura hospitalar, tendo como ações a higienização das feridas e lavagem das mãos dos profissionais da saúde em campo. Somente com essas atitudes, a mortalidade de 43% dos soldados caiu para 2%.

Florence Nightingale, a britânica que revolucionou a enfermagem e nossos hábitos de higiene. Foto: Henry Hering (1814–1893)/Wikimedia Commons

Não somente seu exemplar trabalho da guerra trouxe mudanças para todo o campo da saúde, como também seu pioneirismo na utilização de gráficos para apresentação clara de dados, permitindo que os demais fossem capazes de compreender, e assim intervir socialmente. Seu empenho na democratização dos dados clínicos e em melhorar o atendimento ao paciente, além do trabalho pela reforma do sistema militar de saúde, fez com que ela fosse uma mulher à frente do seu tempo, apesar das barreiras da era vitoriana e de seus privilégios pela criação abastada. Foi nela que o suíço Jean Henry Dunant se inspirou para criar a Cruz Vermelha Internacional. O papel de uma única mulher trouxe tantas mudanças significativas para a área da saúde que me incomoda o fato de não sabermos tanto sobre ela e como que isso impactou em todas as áreas da saúde, uma vez que é essencial jamais esquecer o quanto cada um faz diferença no cuidado ao paciente, independente da profissão.

Dia Internacional da Enfermagem

A enfermagem é uma categoria organizada internamente por 3 categorias: enfermeiro, técnico de enfermagem e auxiliar de enfermagem. É uma profissão que atua em múltiplas dimensões da saúde, desde a assistência, na saúde pública, prevenção e tratamento de doenças, atendendo pessoas desde seu nascimento até a sua morte. Essa característica permitiu a expansão dos locais de atuação dos profissionais dentro da área privada e pública, tão essencial que, sem ela, o trabalho seria impossível.

Essa profissão, embora extremamente presente, ocupando posições de liderança dentro de unidades de saúde, projetos e intervenções na comunidade, ainda passa por diversos desafios que tornam seu trabalho mais custoso que o necessário. Uma das mais presentes realidades é o histórico de machismo dentro da profissão, uma vez que por muito tempo foi exercida majoritariamente por mulheres, enquanto a medicina teve domínio masculino, além da diferenciação da atuação das duas profissões, que por muitas vezes subjetivas faz com que muitos não saibam os limites entre ambas. De modo geral, a medicina tem o foco em diagnosticar as doenças e indicar o manejo adequado a cada característica do paciente, se atentando a suas necessidades e capacidades de seguir o plano de tratamento, enquanto a enfermagem é responsável pelo acompanhamento do tratamento e de seus sinais vitais, prestação de primeiros socorros, prevenção, além de gestão da equipe de auxiliares e técnicos de enfermagem. O trabalho em equipe de ambos é importante para prover o melhor serviço ao paciente, no entanto, é preciso respeitar a autonomia e deveres de cada uma, apesar da dificuldade de diferenciação na prática.

Sessão especial remota, realizada da sala de controle da Secretaria de Tecnologia da Informação (Prodasen), destinado a comemorar o dia Internacional da Enfermagem (12 de maio). À mesa, presidente e requerente desta sessão de comemoração, senador Fabiano Contarato (REDE-ES). Foto: Pedro França/Agência Senado

O principal empecilho na diferenciação muito se acredita ser o acúmulo de funções em todos os serviços, tendo como principal questionamento do setor a carga de trabalho e remuneração inadequada e não definida, o que gera desgaste para a grande maioria dos profissionais. É comum na realidade do enfermeiro a grande quantidade de jornadas para ter uma boa remuneração, emendar plantões, ter mais de um emprego, o que por consequência afeta a manutenção da própria saúde física e psicológica, com síndromes como de Burnout e Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT). Tais empecilhos são entraves na qualidade da assistência ao paciente, dando à categoria o sentimento de exploração, pois, tendo muito trabalho, renuncia ao próprio bem-estar e não ganha adequadamente, fazendo tão importante o conhecimento e debate sobre as reinvindicações do Projeto de Lei (PL) nº 2.564/2020.

Ademais, os preconceitos presentes no corpo social, majoritariamente de forma inconsciente, de que a enfermagem seja uma ferramenta ou auxiliar médico, prejudicam a noção de autonomia e independência da profissão, obstruindo o reconhecimento dos direitos que essa categoria merece e está lutando para conseguir. Para muitos, a profissão do enfermeiro limita-se a ajudar o médico, seguindo suas indicações e demandas, tendo que fazer o que ele solicita, porém a realidade é outra: o enfermeiro tem toda a autonomia para questionar caso não concorde com o manejo elegido pelo médico, e em equipe devem entrar em acordo para dar continuidade ao trabalho. Outrossim, há a infeliz e limitada concepção de mentes insipientes de que acadêmicos da enfermagem são, em sua maioria, alunos que não foram capazes de passar no vestibular de medicina, o que é um desrespeito às pessoas que escolheram a profissão por vocação, amor e propósito.

Afinal, a “enfermagem é ciência e a arte de assistir o ser humano no atendimento de suas necessidades básicas, de torná-lo independente desta assistência através da educação; de recuperar, manter e promover sua saúde, contando para isso com a colaboração de outros grupos profissionais”, é “gente que cuida de gente”, como diz Wanda de Aguiar Horta, mulher, nortista, professora e enfermeira que entrou para a história devido ao seu papel na humanização do atendimento de saúde no Brasil através da Teoria das Necessidades Humanas Básicas, do psicólogo Abraham H. Maslow.

Vacinação no Amazonas começa e profissional de enfermagem de origem indígena é primeira imunizada (Manaus, 19/01/2021). Foto: Gilson Mello/Especial para o MS

É de extrema importância que se valorize essa profissão, para empoderar as pessoas que estudam ou estudaram, e se esforçam muito, diariamente, para oferecer os mais ímpares serviços em prol da saúde e o bem-estar de cada paciente que acompanham. E repito: a desvalorização de uma categoria não diminui a riqueza de conhecimento e a importância que ela detém, da mesma forma que a supervalorização não é sinônimo de que tal área possui todo o conhecimento ou que seu conhecimento seja mais importante, até porque nenhuma profissão é superior ou inferior à outra, além de que equipe competente precisa ser multiprofissional, com todos tendo mínimo conhecimento da atuação do outro e respeitando a profissão exercida, jamais esquecendo do objetivo em comum.

A humanização do trabalho não se limita às relações entre o profissional e o paciente, mas é de extrema urgência que se entenda que a humanidade também reside no reconhecimento da importância do colega. Não é mais possível permitir que a saúde das pessoas seja tratada à mercê de egocentrismo e ignorância: a saúde é um direito a ser garantido por todos e para todos.

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Isabela Siyao Chen
Revista Brado

(爱)| Amarela | Paulista | Acadêmica de Medicina | Ambientalista | Voluntária | Colunista da Revista Brado | Um Mistério em Várias Línguas |