Qual a viabilidade de uma denúncia no Tribunal de Haia?

Depositar as expectativas no Tribunal Internacional pode não ser a melhor opção

Rodolfo Nascimento
Revista Brado
7 min readJul 7, 2021

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Sede do Tribunal Penal Internacional, em Haia. Foto: Piroschka van de Wouw/Reuters

Com o desenrolar das investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado Federal, que investiga possíveis omissões e irregularidades do governo federal na gestão da pandemia de Covid-19, se intensificam as expectativas de uma denúncia contra o presidente da República no Tribunal Penal Internacional (TPI), localizado na cidade de Haia (Holanda) por crimes contra a humanidade.

Senadores avaliam que existem provas suficientes contra o chefe do Executivo, ao ponto em que membros da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) devem auxiliar a comissão a tipificar os crimes em um relatório final de investigação, para encaminhar as ações contra o presidente.

Senadores membros da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Covid-19. Da esquerda para direita: Randolfe Rodrigues (REDE-AP), vice-presidente da CPI; Omar Aziz (PSD-AM), presidente; e Renan Calheiros (MDB-AL), relator. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

O Tribunal de Haia é uma instituição permanente, que se baseia no Estatuto de Roma, um instrumento jurídico internacional que estabeleceu a Corte, no ano de 1998. Sua criação ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, com o reconhecimento do genocídio praticado por diversos países e a necessidade da criação de um tribunal internacional pelos países vencedores, exprimindo a visão de indispensabilidade de um julgamento público, a nível global, das atrocidades praticadas na Guerra.

Nesse contexto são estabelecidos alguns Tribunais Penais Internacionais, como o de Nuremberg, que se destaca pelo julgamento de lideranças do Partido Nazista alemão. O Julgamento de Nuremberg constituiu alterações estruturais no sistema jurídico internacional do século XX, sendo parte fundamental para o desenvolvimento do conceito de tribunais internacionais.

Novembro de 1945, réus no julgamento do Tribunal Militar Internacional de criminosos de guerra em Nuremberg, na Alemanha. Os julgamentos de Nuremberg resultaram em processos contra 24 membros da liderança da Alemanha Nazista, onde foram decretadas 12 condenações à morte, três prisões perpétuas e mais duas prisões. Imagem: Raymond D’Addario/Domínio Público

A Corte de Nuremberg, entretanto, foi constituída na forma de um tribunal de exceção, visto que se tratava de um julgamento dos vencedores contra os crimes praticados pelos vencidos. Sendo assim, houve seletividade de acusados e imparcialidade na seleção de defensores e juízes, o que traz críticas ao sistema que foi estabelecido. Apesar dos vícios no conhecimento penal, o Julgamento de Nuremberg inspirou a criação de outros tribunais nos mesmos padrões, como os de Tóquio, Ruanda e Iugoslávia, entretanto, todos criados para uma finalidade específica, em julgamento de conflitos exclusivos.

Visando ampliar o campo de atuação, o sistema das Nações Unidas buscou estabelecer mecanismos permanentes e imparciais para a justiça penal internacional. Logo, pelo desenvolvimento do pensamento jurídico internacional, ao invés de haver tribunais para uma única finalidade, os esforços moldam o movimento que se estabelece pelo Estatuto de Roma, para criação do Tribunal Penal Internacional, de caráter permanente, sendo aprovado pela maioria das nações do Globo. Entretanto, países como os Estados Unidos, Israel, Iraque e China não se vincularam ao tratado.

O Brasil aprovou-o internamente, pelo Decreto Legislativo nº 112/2002, entrando em vigor através do Decreto nº 4.388/2002. Além disso, após a Reforma do Judiciário estabelecida pela Emenda Constitucional nº 45/2004, se estabelece que “O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”.

O Tribunal de Haia, como ficou conhecido, é uma instituição independente, com jurisdição sobre todos aqueles responsáveis por crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão, desde que tenham alcance internacional. A sua competência é complementar as jurisdições penais nacionais, ou seja, um julgamento em Haia não é substituto dos tribunais nacionais dos países que aderiram ao Estatuto de Roma, como no Brasil, que possui tipificações penais que se assemelham e estabilidade das instituições competentes para julgar.

Composição do Tribunal em 2018. Os 18 juízes do TPI são eleitos pela Assembleia dos Estados Participantes, separados em três Divisões Judiciais, que julgam matérias nas fases de Pré-Julgamento, Julgamento e Recursos. Desde a fundação, houve apenas uma representação brasileira: Sylvia Steiner, juíza do Tribunal de 2003 a 2016. Foto: Divulgação/ICC-CPI

Tomemos de exemplo o crime de genocídio. No Estatuto de Roma, ele está presente no art. 6º. No Brasil, é regulado pela Lei nº 2.889/56. Em ambos, a tipificação se estabelece na intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso por uma série de ações criminosas que se assemelham em ambos os ordenamentos. Logo, quando um brasileiro comete genocídio, o mesmo deve ser julgado pelas instituições judiciárias brasileiras, devido à atuação complementar que é atribuída ao Tribunal Penal Internacional. É necessário inicialmente esgotar a via procedimental interna brasileira.

Embora tenha caráter residual, nada impede que o Tribunal seja invocado. É possível indicar que as medidas internas do país se mostram insuficientes ou que há omissões quanto ao processo ou julgamento dos acusados. O grupo de senadores, no caso atual, pode demonstrar que há infrações às legislações penal e processual internas ou que há favorecimento por parte da justiça interna.

Em entrevista ao jornal El País, a advogada Juliana Vieira dos Santos, da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Arns, esclarece que a jurisdição internacional poderia ser aplicada no caso brasileiro, visto que as autoridades competentes têm se mostrado omissas. A advogada argumenta que qualquer denúncia contra um presidente da República, pelo ordenamento jurídico brasileiro, deve ser encaminhada pela Procuradoria Geral da República (PGR), que é atualmente ocupada por Augusto Aras, que em diversos momentos se demonstrou alinhado com o presidente da República, que o indicou ao cargo em uma quebra de tradição nas indicações ao cargo de procurador-geral.

Aras é criticado por sua inércia a diversas atribuições em que deveria se manifestar. A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber, por exemplo, ao rejeitar pedido da PGR, fez críticas de que o órgão “desincumbiu-se de seu papel constitucional”, dizendo ainda que “no desenho das atribuições do Ministério Público, não se vislumbra o papel de espectador das ações dos Poderes da República”, demonstrando como o atual procurador-geral tem se omitido de suas atribuições e competências. Para aqueles que defendem uma denúncia ao Tribunal Penal Internacional, são visíveis as omissões e bloqueios por parte das autoridades jurídicas do país para apurar ou julgar tais irregularidades.

Thomas Lubanga Dyilo em 2015. Um dos principais organizadores da União dos Patriotas Congoleses, milícia que combatia o Exército Popular Congolês. Na época dos fatos, menores foram recrutados, treinados e usados como soldados durante a guerra civil da República Democrática do Congo. Foto: ICC-CPI

Embora a jurisdição do Tribunal Penal Internacional incida apenas em casos excepcionais, existem precedentes. O primeiro réu julgado foi em 2006: Thomas Lubanga Dyilo, ex-chefe de milícia da República Democrática do Congo, acusado de crimes de guerra por alistamento forçado de crianças no exército, sendo condenado em 2012 a um total de 14 anos de prisão.

No cenário brasileiro, Bolsonaro já conta com uma denúncia formal ao Tribunal Penal Internacional. Em 2019, o presidente foi denunciado pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) por indícios de crimes contra a humanidade e incitação ao genocídio de povos indígenas. A denúncia está sob avaliação preliminar de jurisdição, sendo um marco jamais alcançado em casos de denúncia contra um presidente brasileiro. Além dessa, outras denúncias devem ser anexadas, dentre elas uma proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), além da referente à negligência na gestão da pandemia de Covid-19, já citada, que deve ser atualizada com as demais, com o fim das investigações da CPI. Assim sendo, quanto mais denúncias forem atualizadas à primeira, há maior consistência e impacto para a denúncia.

Por outro lado, apenas a queixa apresentada não é suficiente para início das investigações no âmbito internacional. Em Haia, mais de 90% das requisições são descartadas. Da fundação do Tribunal até 2020, apenas 28 casos chegaram à fase final de julgamento, visto que a maioria das queixas não preenchem os requisitos necessários. Em 2019, das 795 representações recebidas pela Procuradoria, apenas 41 entraram em exame preliminar.

Visão ampla da sede do Tribunal Penal Internacional, em Haia. Foto: ICC-CPI

O Tribunal Penal Internacional não tem precedentes de um confronto como o que está exposto no caso brasileiro, o que tem chamado a atenção em uma escala internacional. A acusação ao presidente da República tem avançado e chega a uma fase inédita em Haia. O advogado britânico Karim Asad Ahmad Khan QC, recém-eleito procurador-geral do TPI, tem conhecimento sobre os casos e deve decidir ou não sobre a investigação preliminar contra Bolsonaro.

O Tribunal de Haia se apresenta no cenário internacional como resultado de um longo processo de responsabilização motivado por um sentimento universal de repúdio aos crimes de impacto sobre a humanidade e os direitos humanos. Para qualquer político investigado por esse sistema, e eventualmente condenado, existe uma sinalização negativa imensurável. Estar envolvido em crimes contra a humanidade e ser exposto internacionalmente em um julgamento não é uma desonra apenas para o investigado, mas para todo o país que sofrerá as consequências de suas ações.

A finalidade do Tribunal Penal Internacional versa no sentimento de impedir a impunidade contra os mais graves e hediondos abusos contra a consciência humana e a segurança coletiva. Entretanto, um julgamento em Haia não é substituto dos tribunais nacionais, onde a autonomia da nação e de seu sistema jurídico deveria ser basilar. A série de denúncias apresentadas internacionalmente elucidam a tensão que vive a democracia brasileira. Atos atentatórios aos povos originários e ao povo brasileiro deveriam ser veementemente repudiados e repelidos pelas autoridades públicas. A necessidade de uma denúncia internacional expõe a presença da omissão, da impunidade, do favorecimento e da sobreposição de interesses pessoais aos coletivos.

Este texto possui informações do “Curso de Direito Penal: Parte Geral” de Guilherme de Souza Nucci e do “Curso de Direito Penal: Parte Geral” de Fernando Capez.

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Rodolfo Nascimento
Revista Brado

Capixaba. Estudante de Direito. Diretor de Pesquisa da Associação Atitude Ubuntu. Editor e Colunista da Revista Brado.