Qual o preço do seu voto?

Puxa uma cadeira e bora bater um papo

João Vitor Castro
Revista Brado
10 min readApr 30, 2022

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Foto: Senado Federal/Creative Commons

E ste texto vai ser diferente dos que costumo escrever aqui. Não vai ser cheio de estatísticas ou teorias. Quero contar uma história. Não sobre os grandes figurões que ligam a minha história à sua. Quero contar uma história que é só minha mesmo, totalmente pessoal. Chega mais.

Você lembra da primeira eleição que você acompanhou? Mesmo sem saber direito o que tava acontecendo, tenta lembrar da primeira vez que você viu seus pais pegando santinho na rua, comentando sobre quem queriam votar, do dia da eleição. A minha primeira foi a de 2006, Alckmin e Lula — àquela época, rivais. Lembro de assistir a um dos últimos debates do segundo turno, na TV tijolão minúscula da nossa antiga casa de praia. Também lembro de ir votar com minha mãe e de acompanhar a apuração nos intervalos do Faustão, em pé no meio do sofá da sala, sem entender absolutamente nada.

Lembro também de outra votação antes dessa: o referendo do desarmamento, em 2005. Pra quem não pegou essa época, foi o dia que os brasileiros foram pra urna escolher se o Brasil iria ou não mudar as regras para posse de armas de fogo. Nesse eu lembro de ver as propagandas do “sim” e do “não” em quase todo intervalo na TV. Também lembro que tinha uma divergência na minha casa. Lembro de votar com minha mãe também. Eu tinha 5 anos. É uma coisa que eu certamente teria esquecido, se não fosse a cultura que minha família criou em torno do voto — e que muitas famílias brasileiras também criaram.

Lula x Alckmin: a primeira eleição que tenho memória. Sim, naquele tempo os rivais apertavam as mãos e sorriam para as câmeras. Foto: Maurício Lima/AFP

Não sei como foi essa experiência pra quem tem 15, 16 ou 17 anos hoje, mas desde criança minha mãe sempre me levava pra apertar o ‘confirma’ com ela na urna. Dia de eleição era um evento aqui em casa — e isso era bastante comum no Brasil todo. A gente vota perto de casa, então ia todo mundo andando, no mesmo horário. Na última salinha do primeiro corredor da escola ficava a sessão eleitoral da minha mãe. Eu apertava os botões e escutava o barulhinho. Não sabia pra que que era aquilo e muito menos a importância daquele dia, mas era divertido. Essa sensação que todo mundo tinha de estar cumprindo um dever, mas de bom grado, com certa empolgação. Depois a gente voltava pra casa ou passava num restaurante e almoçava junto. De tarde, acompanhar apuração nos intervalos do Faustão.

Minha família formou uma cultura ao redor do dia das eleições que boa parte das famílias brasileiras formou também. O voto é um dever, mas pras gerações antes da minha também era uma conquista. Nossos avós ficaram 21 anos sem votar pra presidente, muitos morreram em busca desse direito que hoje parece tão banal. O brasileiro não precisou ser ensinado sobre o valor do voto. Essa cultura foi, por quase três décadas, parte fundamental do que é ser brasileiro, da nossa identidade. Ano de copa é ano de eleição pra presidente e essa empolgação misturada com revolta era parte do ritual do que é ser a gente. Ainda é um pouco, mas isso tá se perdendo com o tempo, por uma série de motivos. E isso é triste. Esse direito que parece tão básico custou muito caro: custou a vida de milhares de brasileiros. Muita gente morreu pra gente poder apertar dois algarismos e um ‘confirma’ na urna eletrônica.

Comício das Diretas Já na Praça da Sé, em São Paulo, 1984. Foto: Reprodução

Em 2016, eu e um grupo de amigos saímos da escola e fomos pra um cartório eleitoral lá perto. Fizemos fila só pra perguntar tudo que a gente precisava fazer pra tirar o título e votar naquele ano. Era eleição municipal, só de prefeito e vereador, e a gente ainda nem sabia quem ia ser candidato. Uns dias depois eu voltei lá com a minha mãe, fiquei umas duas horas no cartório, preenchi uma penca de documentos e fiz meu título. Eu ainda nem tinha RG. Minha primeira identidade foi expedida em 6 de junho de 2016; o título de eleitor em 25 de abril. Sim, tive título de eleitor antes de ter carteira de identidade.

Pois é, naquela época — os tempos jurássicos de apenas seis anos atrás — pra fazer o título era uma baita burocracia ainda. 2016 tava mais perto de 1989 do que de 2022. Agora demora cinco minutos, dá pra fazer deitado na cama pelo celular. E mesmo com toda burocracia, a leva de eleitores entre 16 e 18 anos que votaram comigo em 2016 foi de mais de 2,3 milhões. Em janeiro deste ano, o Tribunal Superior Eleitoral só tinha registrado 730 mil eleitores nessa faixa etária. É o número mais baixo desde que os adolescentes passaram a poder votar. Em 2016, o número estava mais próximo de 1992 (3,2 milhões), 24 anos antes, do que de 2022, seis anos depois.

Mas eu não julgo os jovens que não querem votar hoje. Pra minha geração de eleitores — sim, eu sei que sou considerado da mesma geração dos jovens que estão aptos a tirarem o título este ano, mas nós somos de gerações de eleitores diferentes — foi fácil aprender a gostar de política. Quando eu tinha 13 anos estavam eclodindo as Jornadas de Junho de 2013. Tudo que lemos hoje nas matérias sobre aquela onda de protestos eu me lembro de assistir ao vivo. Até estive na concentração de uma manifestação, cheia daquelas máscaras de Guy Fawkes e tocando “Vem Pra Rua”, novamente com minha mãe, que me levou por saber o quanto aquilo era importante pra mim.

Manifestantes ocupam prédio do Congresso Nacional nas Jornadas de Junho de 2013. Foto: Mídia Ninja

Sabemos de todos os problemas que envolvem aquela onda e dos desdobramentos catastróficos dela, mas o que quero dizer é que, para alguém que estava entrando na adolescência, assistir àquilo ao vivo foi muito decisivo. Era a primeira vez que a minha geração tinha contato com a política de rua. Era mágico ver aquela galera pouca coisa mais velha que a gente toda encapuzada, vestida de preto, se mobilizando como não se via há décadas e com as pitadas de inconsequência, impulsividade e desrespeito às normas inerentes à juventude.

Nessa época, também tínhamos — sem fazer aqui qualquer juízo de valor a essas pessoas — a primeira mulher na Presidência da República e o primeiro negro presidindo o Supremo Tribunal Federal. No mesmo ano, este mesmo negro pôs na cadeia — num julgamento justo, ao contrário dos muitos dos anos seguintes — uma penca de mensaleiros. Por mais que seja difícil acreditar nisso, a minha geração de eleitores tinha muito motivo pra ter esperança. O Brasil parecia estar despertando de um sono profundo e colocando as coisas no lugar. Hoje sabemos que não foi isso que aconteceu.

Meu lapso de idade pra quem hoje pode começar a votar é de só seis anos, mas nossas experiências com a política — e por isso digo que somos gerações de eleitores distintas — são completamente opostas. Quando esse pessoal entrou na adolescência o poder já tava tomado de novo por um bando de homem corcunda de cabelo branco. Os protestos que se viam eram uma ascensão cafona de uma extrema-direita há décadas adormecida. Protestos entediantes de se acompanhar. Vazavam áudios, políticos eram presos, mas isso já estava cotidiano. A primeira eleição que boa parte dessa turma deve se lembrar foi a que elegeu um fascista, um psicopata, um cara que falava coisas que pra essa geração já é óbvio que são absurdas e inaceitáveis.

Enquanto na minha adolescência eu pintei a cara, fiz cartaz, comprei camisa, participei de movimentos que hoje me orgulho ou me arrependo, essa geração esteve trancada em casa com medo de morrer ou de matar os pais e avós. Nossa experiência com a política não é distinta: é oposta. Essa é uma geração de eleitores que aparentemente não tem sequer um motivo para ter o que a minha teve desde cedo: esperança.

Quando eu comecei a acompanhar a política, essa era a cara dos Três Poderes. Imagem: Cerimônia de posse do ex-ministro Joaquim Barbosa (2012). Foto: Senado Federal/Creative Commons

Mas há uma coisa que ainda pode nos ajudar: se não a esperança racional, a cultura. Aquela que eu falava no começo do texto, dos pais que carregavam os filhos pra votarem, que cumpriam o ritual tipicamente brasileiro do domingo eleitoral.

A minha formação política não teve quase nenhuma influência da minha família. Eu a formei sozinho, e com muitos embates em casa. Eu mudei de opinião dezenas de vezes do começo da adolescência aos 22 anos — e pretendo mudar mais milhares de vezes. Mas uma coisa nunca vai mudar: o valor que eu dou pro meu voto. E isso não foi ideologia nenhuma que me ensinou. Foram os ‘feriados eleitorais’ ao longo da minha vida, foi achar o máximo sair na rua e ver aquele tanto de gente reunida, distribuindo santinho, fazendo churrasco, com camisas de todas as cores, com todos os nomes, dividindo o mesmo espaço, às vezes se olhando torto, mas entendendo que estavam partilhando do mesmo direito — e que baita direito.

Escutar o barulhinho da urna depois de apertar ‘confirma’ pra minha mãe me fez gostar demais daquele barulhinho e me recusar a um dia deixar de escutá-lo. Provavelmente nem era a intenção da minha mãe, mas aquilo criou uma memória afetiva difícil de ser apagada. Votar é hoje pra mim, além de tudo, prezar pela memória desses dias. Foi esse ato simples que me incutiu boa parte do valor que eu dou pra democracia. A cultura que minha família e tantas outras criaram ao redor do voto me impede de um dia esquecer esse sentimento. Sem saber, minha mãe estava a cada ‘confirma’ criando um democrata incorrigível.

E não se culpem se vocês não sentirem o mesmo. Essa cultura, infelizmente, está aos poucos se perdendo. Em 2005, havia divergências na minha casa sobre o referendo do desarmamento, mas minha família toda foi votar junto e cumpriu o ritual. Em 2006, 2008, 2010 e 2012 os votos eram mais alinhados. Em 2014 também começavam a crescer as divergências, e eu — naquele momento a voz destoante — já falava na direção contrária, mas ainda assim o ritual foi cumprido. Em 2016, meu primeiro voto, a mesma coisa. Em 2018, votamos cada um num horário diferente e não nos reunimos para acompanhar a apuração. Parece pouco, mas isso simboliza muito numa casa em que todo mundo sempre votou junto, mesmo que separado. Mas uma ruptura de 4 anos não acaba com uma cultura de 30. Ainda dá tempo de voltarmos a ser quem somos. Mas precisamos de vocês para isso.

Não tenha medo de fazer besteira com seu título. Em 2016, apertei um número para a prefeitura da minha cidade que não pretendo apertar nunca mais. Também me arrependo de alguns votos de 2018 e 2020, e possivelmente me arrependerei de pelo menos um em todas as minhas eleições. Mas a cada uma a gente melhora a tacada, e na verdade nunca estamos prontos pra decidir sozinhos o nosso futuro comum. E é por isso que decidimos todos juntos. E quanto mais gente pra diversificar essa escolha, mais fácil a gente tomar a decisão correta.

Nem sei se algum adolescente realmente leu este texto, mas sei que a política pra vocês pode ser insuportável. Mas sinto muito informar: é por ela que passam todas as decisões da sua vida. Uma canetada de um cara com terno e gravata lá em Brasília pode arrancar bolsas de estudo que vão te deixar sem conseguir concluir uma universidade. Decisões do Ministério da Economia podem definir se você vai ou não ter um emprego, e se você vai ganhar o suficiente pra comprar arroz e feijão todo mês ou ter um carro ou casa própria. Decisões dos engravatados que nós colocamos no poder podem decidir quantas pessoas vão morrer na próxima pandemia e se você vai ou não vai poder continuar votando na eleição que vem.

Você certamente não está contente com as escolhas dos seus pais, dos seus irmãos, dos seus tios e avós. E você tem até 4 de maio — sim, a próxima quarta-feira — para ajudar a tomar decisões diferentes das deles. Ou isso, ou você vai deixar que as mesmas pessoas que já tomaram decisões erradas nos últimos anos continuem as tomando por você. Decisões que impactam diretamente na sua vida, no seu futuro. Você pode até não mudar sozinho o resultado de uma eleição, mas eu te falo por experiência própria: ter a consciência de que fez o que podia para evitar uma tragédia é, no mínimo, reconfortante. Eu não gostaria de estar na pele de quem se absteve nas últimas eleições. Não recomendo que você esteja.

Por isso, clique aqui e acesse o site do Tribunal Superior Eleitoral. Regularize seu título. Demora menos de cinco minutos. Nós, o Brasil, nós precisamos de você. A democracia precisa de você. Mas muito além de tudo isso, o seu futuro e a sua liberdade precisam de você. Você agora é parte do jogo, e se omitir também é uma escolha. Confortável, talvez. Mas que, acredite, não compensa.

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João Vitor Castro
Revista Brado

Jornalista, editor-chefe da Revista Brado e autor de “Refluxo” (Pedregulho, 2023).