Quem é a avó pega no laço?

Essa expressão, muitas vezes romantizada, esconde um passado sombrio de um país que foi construído sobre as dores de suas mulheres

Isadora Wandenkolk
Revista Brado
4 min readAug 8, 2021

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Foto: Deb Dowd/Unsplash

Eu ainda era muito nova quando me peguei observando no espelho os novos sinais que brotavam no meu rosto. Sinais que já se espalhavam pelo meu corpo e se concentravam especificamente no pescoço. De certa forma, aquilo me incomodava. Sem respostas úteis da minha mãe sobre o porquê de eu ter essas marcas pelo corpo, um dia me encontrei sentada observando que os mesmos pequenos sinais redondinhos também se espalhavam pelo rosto do meu pai. “É porque nós temos sangue de índio*, minha filha”, ele respondeu quando o questionei. “Sua bisavó era índia. Ela foi pega no laço por um português”, explicou-me após eu fazer uma careta de interrogação.

Não faço ideia se a justificativa de fato tem embasamento científico. Também não me importa. Hoje, os sinais não me incomodam mais. No entanto, algo naquela conversa passou a atormentar os meus dias. Ao ponto de quase dez anos depois me encontrar aos prantos após procurar saber mais sobre a minha bisavó. Aquela que foi pega no laço. Dez anos depois e com maturidade o suficiente para entender o que realmente aconteceu: minha bisavó foi sequestrada e estuprada. Direta e reta. Sem tempo para floreios. É a história da minha família que pode ser igual à da sua e que se repete em milhares de outras.

Toda vez que escuto alguém afirmar de forma eloquente que o Brasil é um país miscigenado, automaticamente me questiono: a que custo? Somos uma nação parida à força. Uma nação construída sobre cemitério. Miscigenada com os corpos violados de mulheres negras e indígenas. Corpos estes que até hoje têm sua humanidade negada pelo complexo de superioridade do homem colonizador.

Uma marca tão grande não poderia ser apagada tão facilmente da nossa realidade. E, sinceramente? Não é como se fizessem questão de mudar o cenário atual. Isso porque o subjugar faz parte do projeto de “civilização” deste país. E uma das maiores e mais cruéis estratégias de dominação utilizadas para silenciar e humilhar mulheres* é o estupro. Por mais que nossa sociedade machista e misógina tente negar a existência de uma cultura do estupro, os dados e a história não nos escondem esse fato.

No início deste ano, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos divulgou que, no ano de 2020, a cada duas horas houve uma denúncia de violência sexual contra meninas de até 14 anos. Em maio deste ano, o IBGE divulgou que 7,5 milhões de mulheres do Brasil atual já sofreram algum tipo de violência sexual ao longo da vida. Parece muito? Imagine agora se juntássemos todos os casos desde que Abya Yala — nome dado pelos originários ao território que conhecemos como continente Americano — foi invadida. Esses dados por si só já são assustadores. Mas e as mulheres que, assim como nossas avós, não tiveram a oportunidade de gritar por ajuda?

No governo atual, presenciamos uma política ambiental entreguista, que, de forma escancarada, dá continuidade ao projeto de extermínio dos povos originários. Sabe como é que isso muitas vezes se apresenta? Garimpeiros e posseiros invadem terras indígenas para ameaçar e matar. E, como instrumento de intimidação, estupram e sequestram mulheres e crianças. A prática de “pegar a laço” ou “no dente do cachorro” não morreu no período colonial. Os corpos sagrados de mulheres indígenas ainda são hiperssexualidados e vistos como alvo fácil. Assim como animais, são caçadas e subjugadas. Como a minha e a sua avó (sim, porque todo brasileiro legítimo tem um pé na aldeia e outro na senzala). Como todas nós. Porque quando um homem se acha no direito de violar um de nossos corpos, todas nós somos expostas, humilhadas e reduzidas a objetos sexuais.

Mas a gente ainda pode honrar a memória de nossas ancestrais — umas que foram trazidas à força para cá e outras que tiveram sua terra invadida — ao entender a nossa história e todo sangue que há por trás dela. Não ignorar e florear, por mais doído que seja, e entender que a culpa nunca foi delas. Que, sim, foram vítimas, mas que lutaram porque sangue guerreiro corria pelas veias delas. Elas fizeram o que puderam e como puderam. Cruel é o mundo que romantiza a expressão da avó indígena que foi caçada. Que nega a humanidade de mulheres negras e indígenas. E que naturaliza o estupro.

Se você, que me leu até aqui, passou ou passa por algum tipo de violência sexual, denuncie e não hesite em procurar ajuda. Antes de tudo, saiba que você pode apresentar uma denúncia de violência sexual independente do tempo que tenha passado. Não há prescrição para esse crime. Disque 100, denuncie e procure ajuda com pessoas de sua confiança. Você não está só.

Ainda há tempo de gritar. De apontar o dedo e denunciar. Ainda há tempo de nos ajudarmos e nos acolhermos. Às nossas bisavós, às nossas avós, às nossas mães e irmãs. A mim. E a você: não foi sua culpa. Nunca foi e nunca será nossa culpa.

Por fim, deixo aqui o texto “Avós além do laço”, de Raial Orutu Puri. Vale muito à pena assistir.

Notas:

* O termo “índio/a” foi utilizado aqui apenas para manter a fidelidade ao diálogo real. O termo correto a ser utilizado é “indígena”.

** Estou apontando mulheres como vítimas porque são a maioria, mas sabemos que infelizmente isso também se aplica a homens, sobretudo aos que apresentam, de alguma forma, características que remetem ao feminino. A misoginia nunca falha no Brasil.

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Isadora Wandenkolk
Revista Brado

Jornalista por vocação. Pesquisadora, ativista, questionadora e curiosa.