Quem leu Lima Barreto?

De uma literatura espetacular ao espetáculo da literatura

Gabriel do Nascimento Barbosa
Revista Brado
3 min readJul 31, 2021

--

15ª Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP): sessão de abertura. Foto: Walter Craveiro/Fotos Públicas

Não é um desafio se apaixonar por Paraty. Tudo nos caminhos do centro histórico da cidade é um convite ao deslumbramento. Os portais dos casarões, as ruas desniveladas que revelam caminhos de um Brasil de outro tempo, as igrejas e o litoral belíssimo. Uma vez por ano, além do efeito já magnífico da arquitetura natural da cidade, essa parte do litoral do Rio de Janeiro torna-se casa do maior evento literário do país: a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP).

Na semana da festa, o microcosmo literário da cidade torna-se palco de um acontecimento que promove, ao observador atento, um diagnóstico curioso de uma sociologia da literatura no nosso país. São convidados escritores nacionais e internacionais para 5 dias de uma programação intensa voltada para a produção literária. A organização oficial do evento não é a única a compor o pulsante fluxo de Paraty. Os circuitos paralelos, formados pelo Sesc, editoras independentes e jornais é tão diverso e potente quanto o oficial.

2017, e agora começa a fazer sentido o título do texto, foi uma edição peculiar para a FLIP. Frente às demandas contemporâneas por representatividade, a curadoria da festa optou, dentro da programação oficial, pela escolha de mais mulheres que homens escritores. A agenda teria como foco o autor homenageado: Lima Barreto. Não foi, no longínquo 2017, uma escolha polêmica. Tardia? Talvez, mas não polêmica como costumam ser certas indicações, que, inclusive, podem ser lidas dentro de uma estratégia de marketing.

Lima Barreto foi objeto de uma biografia da escritora Lilia Moritz Schwarcz pouco tempo antes da festa. Vale ressaltar que Barreto é um daqueles escritores que o currículo escolar cuidou de estragar e deixar longe do reconhecimento que merece. Contemporâneo do imortal Machado de Assis, o homenageado é um escritor negro brasileiro que teve a trajetória, compartilhando a mesma cidade do Rio de Janeiro, oposta ao fundador da literatura nacional, mas que, e talvez justamente por isso, escreveu livros diretos, incisivos e precisos sobre o que é o Brasil. É responsável por textos que inventam o nosso país tal como ele é e são capazes de nos fazer pensar a realidade nacional até os dias de hoje. Pode ter sido, tendo em vista a distância temporal da vida do escritor para a festa, uma homenagem tardia, mas não indigna.

Dito isso, não falamos de um escritor estranho a ninguém que tenha cursado o ensino fundamental em terras tupiniquins. É nosso familiar, acessível, domínio público e genial. E, mesmo tão próximo, pouco lido. Mas o efeito da FLIP é interessantíssimo. Com uma abertura feita pela biógrafa acompanhada por Lázaro Ramos, que lia, dentro da igreja matriz, as palavras escritas em primeira pessoa pelo próprio escritor, os escritos de Lima, provavelmente produzidos especialmente pensando nas movimentações da festa, venderam durante os cinco dias como se o anormal fosse que isso não acontecesse.

Há algo de fundamental para pensarmos a produção literária contemporânea nesse fato. O professor João Cézar de Castro Rocha, em uma palestra disponível na internet sobre o Direito À Leitura Literária, diz que é algo de novo que a literatura, ou os autores, sejam tratados de forma espetacular. Em tese, não é algo necessariamente ruim. A movimentação de pessoas em Paraty para prestigiar livros e autores é algo estupendo. Entretanto, há de se pensar nas consequências ou propósitos do espetáculo. É apenas a venda de livros? É o objeto fetichizado? É a movimentação mercadológica da venda de livros? Ou será o oferecimento de novas possibilidades de leitura criando caminhos para que a arte da escrita consiga tornar-se componente dos sujeitos leitores como experiência?

Não há dúvida de que no ano de 2017 os livros de Lima Barreto foram muito vendidos e que a associação Casa Azul, organizadora do evento, faz um trabalho marcante com as populações assistidas por sua movimentação cultural . Mas o quanto do espetáculo se converteu em novas dinâmicas de apreciação da obra? Em reconhecimento institucional do escritor? Políticas públicas de incentivo e manutenção da memória literária brasileira? Em novas abordagens em sala de aula para tornar o escritor mais acessível? No final das contas, entendendo a leitura como caráter formativo que vai além do suporte livro, que não é quantificado nas vendas de exemplares, podemos nos perguntar: quem leu Lima Barreto?

Gostou deste texto? Deixe seus aplausos e compartilhe.

Siga a Brado nas redes sociais: Instagram; Facebook; Twitter; e LinkedIn.

--

--

Gabriel do Nascimento Barbosa
Revista Brado

Historiador de formação e produtor cultural na área de literatura. É colaborador da Revista Brado e acha estranho apresentar a si mesmo.