Quem matou Kathlen Romeu?

O debate mais urgente do país segue cozinhado em banho-maria: é hora de falar de segurança pública

João Vitor Castro
Revista Brado
7 min readJun 14, 2021

--

Artistas se juntaram a amigos e familiares de jovem grávida morta em ação policial para criar o Memorial Kathlen Romeu. Foto: Tatiana Campbell/Super Rádio Tupi

Kathlen tinha 24 anos. Designer de interiores e vendedora de loja, estava grávida há 14 semanas. Nas redes sociais, fazia questão de demonstrar sua alegria e entusiasmo com a gravidez. Segundo o namorado Marcelo Ramos, pai de seu filho, Kathlen era “a pessoa mais radiante e animada” que conhecia. Na manhã da última terça-feira (8), a jovem publicou em seu perfil: “bom dia, neném”. Foi sua última publicação. Na tarde daquele mesmo dia, Kathlen Romeu morreu após ser baleada durante ação da Polícia Militar na Zona Norte do Rio.

Kathlen não foi a primeira mulher grávida encontrada por uma bala perdida na periferia carioca. Segundo o Instituto Fogo Cruzado, 15 gestantes foram baleadas na região do Grande Rio apenas nos últimos 5 anos. Delas, 8 acabaram mortas. 10 tiveram seus filhos, dentro de suas barrigas, atingidos por balas; apenas um desses bebês sobreviveu.

Ações policiais como a que resultou na morte de Kethlen e seu filho tiveram um crescimento nos últimos meses, após um período de relativo cessar-fogo que teve início com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 do Supremo Tribunal Federal, que permite operações policiais apenas de caráter urgente e excepcional, com aviso prévio ao Ministério Público, durante a pandemia de Covid-19.

Essa decisão do STF levou a uma queda de 23% no número de trocas de tiros, de quase 30% na quantidade de mortos por arma de fogo e também de 30% no total de mortes de agentes de segurança no Rio de Janeiro. Foi a primeira redução de letalidade desde 2013.

O relativo estado de tranquilidade, contudo, foi interrompido por uma operação policial ilegal no dia 6 de maio. A chacina do Jacarezinho foi o massacre mais letal da história da segurança pública carioca. 28 pessoas acabaram mortas. Entre elas um policial civil, baleado na cabeça logo no início da operação.

Em muitos lugares do mundo, eventos como os até aqui descritos levariam a enxurradas de protestos a nível nacional. Denúncias seriam feitas no exterior e autoridades públicas se retratariam publicamente pelo acontecido; algumas entregariam seus cargos. Não no Brasil. No Brasil nós estamos acostumados a matar mais que a guerra civil na Síria.

Manifestação em maio de 2020 em Minneapolis após assassinato de George Floyd. Foto: John Minchillo/AP Photo

Segundo o Atlas da Violência 2020, 628.595 pessoas foram assassinadas no Brasil entre 2008 e 2018. Na Síria, a guerra civil causou 494.438 mortes entre 2011 e 2021. O mesmo atlas mostrou que 53% das vítimas de homicídios no Brasil estão entre os 15 e os 29 anos. Além disso, uma pessoa negra no Brasil tem três vezes mais chance de ser assassinada que uma pessoa não negra. Kethlen Romeu estava nos dois grupos: jovem e negra.

Ainda assim, segurança pública, por aqui, não decide eleição. Segurança pública não está entre os temas que o brasileiro médio carrega na ponta da língua e tampouco domina a pilha de projetos da maioria dos partidos e figuras políticas do país. Aliás, a maioria dos candidatos foge desse tema.

Falar de segurança pública custa caro. O deputado federal Marcelo Freixo (PSB-RJ), é considerado um dos políticos mais dedicados à defesa dos direitos humanos e ao combate às milícias no Rio de Janeiro. Em dezembro de 2018 a Polícia Civil interceptou um plano de assassinato contra Freixo promovido pela mesma milícia que executou a vereadora Marielle Franco, sua colega. Milicianos também assassinaram o irmão e o segurança do deputado, em 2006 e 2015, respectivamente. Foto: Wikimedia Commons

É um assunto espinhoso, é verdade. Quais as soluções para a segurança pública brasileira? Não é objetivo deste texto levantar quaisquer possibilidades — tampouco supor as causas de sua falência. A ideia aqui é deixar claro o que para muitos ainda não está: a política de segurança pública brasileira, sobretudo do Rio de Janeiro, não apenas falhou como faliu. Não no governo Bolsonaro, que fique claro, mas em todos os governos pós 1988 — pré também, mas a barbárie que antecedeu nossa Constituição sequer vem ao caso.

A polícia brasileira é a que mais mata e a que mais morre do planeta. E é bom que isso também fique claro: a que mais morre. Numa guerra que vitima a população preta, pobre e favelada todos os dias, não é só um lado que morre. O policial, também pobre, muitas vezes também preto e favelado, também é vítima desse conflito perpétuo, norteado sobretudo por uma guerra às drogas que mata mais pessoas do que as próprias drogas que combate.

O tema é delicado, mas ele deve ser abordado — cabe aqui o mea culpa, inclusive, por esta editoria de Política jamais ter trazido esse tema até o momento. Ele deve ser abordado porque, se não for, Kethlen Romeu logo sequer será lembrada, porque outra Kethlen, outra Ágatha, outro João Pedro, outro David, outras 15 mulheres grávidas, outras crianças e outros 28 jovens serão assassinados pela irresponsabilidade de um Estado que mata seu próprio povo como se matasse ratos e de um debate público que negligencia e secundariza um tema que se refere à escolha entre a vida e a morte de mais da metade da população brasileira.

João Pedro Mattos. Foto: Reprodução/Facebook

A ADPF 635 do STF foi estabelecida após o assassinato abominável de João Pedro Mattos, um menino de 14 anos que brincava com seus primos na casa dos tios, quando policiais, pagos por brasileiros entre os quais os pais de João Pedro, invadiram sua casa e fuzilaram — fuzilaram! — o menino.

Menos de um mês antes, na periferia de São Paulo, o vendedor ambulante David Nascimento dos Santos, de 23 anos, foi sequestrado por policiais que o assassinaram com 5 tiros e trocaram sua roupa por peças similares às da descrição de um suspeito de roubo de carro e ainda plantaram uma arma em sua mão para forjar uma troca de tiros. David foi levado pelos PMs enquanto esperava a entrega de um lanche por delivery. Seu corpo tinha marcas de tortura.

Que segurança pública é essa?

Toda polícia do mundo comete erros. Toda polícia do mundo tem policiais que não honram a farda, que cometem excessos. Mas nenhuma polícia do planeta carrega nas costas a quantidade abissal de desvios, de torturas, de assassinatos como a brasileira. E nenhuma carrega a quantidade de policiais mortos em operações como a brasileira.

Será tão difícil entender que a conta não fecha? Será tão difícil entender que a ideia de que “bandido bom é bandido morto” tem matado mais inocentes que bandidos? Será tão difícil entender que quando se “mira na cabecinha” não se mata quem aponta um fuzil, mas sim quem carrega um guarda-chuva?

O ex-governador afastado do RJ, Wilson Witzel (PSC-RJ) celebra a morte de sequestrador de ônibus em 2019. É de Witzel o lema “mirar na cabecinha”. Foto: DCM

Necropolíticas — que como o próprio nome já diz é a política da morte, do assassinato a sangue frio, da ideologia miliciana que tomou conta do Brasil — são eficazes eleitoralmente. Não porque a população brasileira seja “neofascista”, longe disso. Mas porque a população brasileira está cansada da violência que impera nas grandes cidades e quer uma resposta simples, rápida, que corte o mal pela raiz.

Convencer a população de que isso está errado custa caro. Custa caro em tempo, em campanha, mas sobretudo em vidas. É preciso jogar com o que temos. E o que temos, hoje, não ajuda.

Há no Brasil, das câmaras municipais da Zona Oeste do Rio ao Congresso Nacional, um amplo contingente de políticos que se propõem a mudar a segurança pública que impera desde pelo menos a fracassada ideia das UPP’s (Unidades de Polícia Pacificadora). A questão é: eles estão mais preocupados em evitar mortes como a de Kethlen Romeu ou em marcar posição?

Caso do pedreiro Amarildo Souza é o mais emblemático da atuação das UPP’s. Amarildo foi levado à UPP da Rocinha em 2013 e nunca mais apareceu. Em 2016, 12 policiais foram condenados por tortura seguida de morte, ocultação de cadáver e fraude processual. Foto: Agência Brasil

Sabemos que a democracia é o constante exercício do diálogo, da negociação, da concessão, da flexibilidade. A cada ente político cabe a escolha entre atrasar a efetivação de uma ideia e passar anos — às vezes décadas — a cozinhando junto à sociedade ou a colocar em prática com ressalvas, correções, concessões, produtos da negociação com os diferentes interesses envolvidos. Existem pautas que podem esperar o cozimento sem prazo. Outras, como é o caso da segurança pública, não podem, porque vêm sendo há décadas cozinhadas no sangue de brasileiros e brasileiras vítimas da violência cotidiana e absurdamente normalizada.

Algumas das propostas de segurança pública brasileiras são revolucionárias, podem colocar o país nos trilhos e subtrair nossas taxas de homicídios aos níveis nórdicos. Mas elas são utópicas no curto prazo. Elas jamais serão aprovadas nos parlamentos conservadores que dominam a política nacional. A solução? Sentar à mesa. Dialogar, negociar, conceder. Fazer política, ora.

Infelizmente, não temos tempo para cozinhar no ventre da sociedade ideias que erradiquem as mortes causadas pelo Estado nas periferias do país — mais uma vez, sobretudo do Rio de Janeiro. Pelo menos não enquanto crianças são assassinadas no ventre de suas mães sob o único crime de terem uma ascendência — racial, geográfica e socioeconômica — que o Estado brasileiro optou por não cuidar.

Se apostar em quedas de 100, 70, 50% ainda é uma utopia, apostemos nos 30% que experimentamos em apenas um ano. Não é o suficiente, longe disso. Mas em um país que precisou de uma pandemia para ter sua primeira redução no número de assassinatos por agentes estatais em 7 anos, qualquer taxa constante de redução anual já seria um avanço inestimável.

As vidas de Kathlen Romeu, das 28 vítimas do Jacarezinho, de João Pedro Mattos, de David Nascimento e de Ágatha Félix, infelizmente, não serão recuperadas. Mas podemos poupar a de muitos outros. Estamos dispostos?

Gostou deste texto? Deixe seus aplausos (vão de 1 a 50) e compartilhe.

Siga a Brado nas redes sociais: Instagram; Facebook; Twitter; e LinkedIn.

--

--

João Vitor Castro
Revista Brado

Jornalista, editor-chefe da Revista Brado e autor de “Refluxo” (Pedregulho, 2023).