Não é sobre você acreditar

Lá na encruza, existe um homem valente…

Gabriel do Nascimento Barbosa
Revista Brado
3 min readAug 13, 2021

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Lavagem da escadaria da Catedral de Campinas. Foto: Robson B. Sampaio/Creative Commons ORG

Talvez a história da humanidade nunca seja o paraíso pacífico que depositamos em um futuro inalcançável. A crença em um progresso inevitável, de um futuro necessariamente melhor que o passado não existe, pois aprendemos, enquanto população, a nos destruir de formas incontáveis. É tema recorrente, inclusive, de cada uma das editorias desta revista debater e explorar nossos mecanismos coletivos de destruição.

Mas este texto não é um texto pessimista. O primeiro parágrafo é uma constatação que, justamente pelo seu diagnóstico, permite a possibilidade do repensar. O intuito é perceber que há alternativas a uma forma de representação nociva e a constatação que faço é fruto de um relato de um amigo:

Dizia ele que, uma vez, sendo criado dentro de um terreiro e tendo a mãe de santo como sua avó, ficou encarregado de realizar os cuidados com as entidades quando da ausência da matriarca. No primeiro momento, ele, bastante cético, negou a responsabilidade argumentando que não acreditava nos ritos. Ela prontamente respondeu: “e quem disse que você precisa acreditar?”.

Há, nas palavras dessa senhora, considerações fortíssimas a respeito de como nossa cultura funciona. Há uma denúncia do eu, construído à maneira ocidental, que é o eixo de sua própria realidade. Uma figura que é a base epistemológica de como lidamos com nossas relações pessoais, sociais e nossos afetos. Ao responder sobre o acreditar, acontece a mudança que se faz, primeiro, na dimensão discursiva: o mundo não é sobre você, você é que é sobre o mundo.

A relação dela com o pensamento discordante em nada interfere em como o mundo é de fato. Sua fé é uma forma de comunhão com iguais. De ordenamento. Não é nem sobre ela. Vai além. A transcende. Enquanto isso, a negação objetiva do que seria a crença não diz nada sobre a realidade, mas somente sobre o seu sujeito enunciador. A negação da crença não muda o fato daquela realidade existir, daquele mundo ser real, palpável, perfumado, sensível.

Percebam que em nenhum momento a crença ou a descrença, para ela, é elemento que justifique alguma interpretação de nível pessoal. A discordância existe. É absorvida, entendida, apreciada e tratada. É uma ética da alteridade. Do respeito.

As trajetórias dos povos não ocidentais, a preservação da sua cultura e identidade, devem-se a essa cosmogonia. Luiz Antônio Simas trata bem disso ao falar de epistemologias da encruzilhada. Um entendimento sobre a pluralidade, sobre as múltiplas possibilidades de ser e a assimilação das diferentes identidades sem significar segregação ou subjugação.

A lógica ocidental sempre cuidou de um apagamento das modalidades de pensamento que não se encaixavam em sua perspectiva maniqueísta. Produziram o comportamento do primeiro parágrafo, não por serem ruins essencialmente, mas por possuírem uma ética da diferença que não aceita o outro.

A ética do outro na cultura ocidental é a da domesticação de saberes e vivências. O respeito acontece no silenciamento. Atualmente, essas práticas, devido às novas possibilidades de leitura na contemporaneidade, estão sendo reveladas como políticas violentas de apagamento, fomentando um debate importantíssimo para a memória dos povos originários e diaspóricos.

Apesar dos esforços pelo silêncio das rodas e tambores, as culturas da encruzilhada gingaram, assimilaram, dançaram e permanecem. Fazem dos terreiros e das florestas as suas universidades. Cultivam, no adubado solo da cultura brasileira, uma outra ética. Um novo jeito de lidar com o ser humano, com a natureza, com os iguais e com os diferentes. O olhar alternativo sobre o mesmo mundo que foi tomado por uma lógica de destruição dos potenciais discordantes. É nosso papel entender as estratégias da negociação, formular um novo paradigma da pluralidade baseada nas trajetórias ancestrais e agradecer por aqueles que cultivam o ódio não precisarem nos acreditar para abrirmos caminhos.

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Gabriel do Nascimento Barbosa
Revista Brado

Historiador de formação e produtor cultural na área de literatura. É colaborador da Revista Brado e acha estranho apresentar a si mesmo.