RAÇA | O privilégio de conhecer sua própria história

Da demonização da cultura africana à queima de arquivos da escravidão ordenada por Rui Barbosa: o apagamento da ancestralidade negra no Brasil

João Paulo Rocha Lopes
Revista Brado
6 min readJul 12, 2020

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Oitava marcha contra a intolerância religiosa, que aconteceu em 2019 no Rio de Janeiro. Mario Tama/Getty Images

Embora a maioria da população brasileira seja negra — 56,10% da população, segundo o IBGE — e fundamental na formação do país, a maior parte tem pouco ou nenhum conhecimento sobre seus antepassados e a origem de suas próprias famílias.

O passado escravocrata e desigual enfrentado em nosso país fez com que a população negra passasse por um apagamento de parte importante da sua história. Os reflexos são sentidos até hoje, uma vez que grande parte do povo negro possui pouco ou nenhum conhecimento sobre suas origens e nunca sequer ouviu falar sobre seus antepassados diretos.

A invisibilização histórica de corpos negros resultou em um apagamento da história e da cultura dessas pessoas, e em pouco conhecimento daquilo que nos constituiu e nos formou ao longo dos anos.

A raiz desse problema é secular: surge junto com a escravidão de povos africanos. Por mais de 300 anos (1549–1888), negros foram escravizados no Brasil, num dos capítulos mais injustos e desumanos de nossa história. Durante esse período, milhares eram trazidos nos navios negreiros e tratados como mercadorias pela elite da época.

Devido à forma desumana como eram tratados, não é possível precisar com exatidão quantos escravizados existiam no Brasil na época. O único censo demográfico a considerar a população escrava foi realizado em 1872, mais de 300 anos após a escravidão ter começado e apenas 16 anos antes da abolição completa. O censo registrou que dos 10 milhões de habitantes residentes no Brasil naquele ano, a população escrava correspondia a 15,42% desse total, mais de 1,5 milhão de pessoas.

A falta de dados precisos e de registros dos escravizados que entravam no país fez com que muitos deles fossem completamente apagados da história. O tráfico de escravos contribuiu ainda mais para a invisibilização de muitos desses que vinham de diversos países do continente africano.

Mercado da Rua Valongo. Jean Baptiste Debret

O tráfico de negros escravizados passou a ser proibido em 1831, através da Lei Feijó, no entanto, apesar da queda no número de africanos importados como escravos para o Brasil, a partir de 1835 esse número voltou a crescer, pois os traficantes contavam com o apoio do Estado. A proibição completa veio em 1851, através da Lei Eusébio de Queiroz, o que também não parou os traficantes de escravos, uma vez que esses continuaram a transportar nativos africanos para a América — fato que contribuiu ainda mais para o apagamento da história de muitos dos escravizados que eram trazidos ilegalmente para o país, já que os registros eram muito mais dificultados.

Rui Barbosa foi Ministro da Fazenda entre os anos de 1889 e 1891, durante o governo provisório de Deodoro da Fonseca. Imagem: Reprodução

Um outro momento histórico que pode ter contribuído para esse apagamento foi a polêmica queima de registros realizada com ordem de Rui Barbosa em 1891. Rui foi Ministro da Fazenda entre 1889 e 1891, durante o governo provisório de Deodoro da Fonseca. Foi nesse cargo que o então ministro ordenou em 1890 a queima de importantes documentos da escravidão. O cumprimento da ordem se deu um ano mais tarde, por meio de uma circular. O executor foi o sucessor de Rui Barbosa, Tristão de Alencar Araripe.

Autodeclarado abolicionista, Rui Barbosa ordenou a queima de livros de matrícula, de controle aduaneiro e de recolhimento de tributos, que se encontravam nas repartições do Ministério da Fazenda. Esses documentos eram comprovantes de natureza fiscal que poderiam ser utilizados pelos ex-senhores de escravos na tentativa de pleitear indenizações pela “perda de seus escravos”.

Trecho de tirinha publicada no The Intercept em 2018, no Dia da Consciência Negra. Alê Santos e Estevão Ribeiro

Antes de ordenar a queima dos documentos, Barbosa já havia negado a um grupo de escravocratas a concessão de indenizações. A queima foi justificada como uma tentativa de apagar os resquícios de um período triste da nossa história. Acontece que o ato também impediu que os ex-escravizados também fossem indenizados pelos anos de sofrimento e trabalho forçado, além de ter transformado em cinzas os únicos registros legais da maioria desses.

O não recebimento de indenizações atrapalhou — e muito — a retomada na vida dos escravos libertos após a abolição em 1888. Enquanto alguns homens jovens migravam para as cidades na tentativa de conseguirem empregos informais, os mais vulneráveis ficavam presos às fazendas onde haviam sido escravizados. Mesmo depois de liberto, o povo negro continuava a viver numa posição marginalizada, com pouco ou nenhum acesso a direitos básicos de sobrevivência.

Ao serem trazidos para a América, os africanos eram afastados sobretudo de sua cultura. Tudo aquilo que lhes era familiar e os conectava com suas origens era inferiorizado e demonizado. Eles eram forçados a trabalhar e a viver sob a cultura que lhes era imposta. As manifestações culturais negras eram proibidas e perseguidas pelos nobres e senhores de escravos.

Em participação no programa “Donahue Talk Show”, o então Ministro Louis Farrakhan, importante nome na luta antirracista norte-americana e por muito tempo aliado de Malcom X, falou para uma plateia majoritariamente branca a respeito dessa situação de apagamento sofrida pelos negros escravizados quando eram trazidos para as Américas:

“Os negros que foram trazidos para este país tiveram seus nomes, línguas, culturas, religiões e deuses extirpados e totalmente retirados de suas histórias”.

Todo esse distanciamento e demonização da cultura africana resultou num desconhecimento das raízes de nosso povo. Ainda hoje, muitos dos símbolos da cultura afro infelizmente são enxergados através de uma ótica eurocêntrica como sendo demoníacos.

E a muitos de nós, negros e negras, é negado e até mesmo impossibilitado conhecer de onde vem nosso sangue e nossa origem. Usamos artefatos de uma cultura que não é a nossa, nomes que por origem não têm ligação com nossas raízes africanas. Ainda que o Brasil seja um país extremamente miscigenado e com uma cultura com influência de vários povos, foi a cultura europeia que se impôs com mais força. Percebemos isso através da arquitetura, dos monumentos e das igrejas que ornamentam várias cidades do nosso país.

Essa miscigenação pela qual passamos, e que enriqueceu nossa cultura, também aponta como esse apagamento de pessoas negras é real. Em famílias interraciais tendo antepassados negros e brancos, percebemos que existe um desconhecimento grande dos ancestrais negros das famílias, enquanto dos de pele branca este conhecimento tende a ser muito maior.

Como no relato da estudante de Jornalismo da Universidade Federal do Espírito Santo, Beatriz Bessa, que tem por parte de mãe antepassados brancos e por parte de pai antepassados negros:

“Da família da minha mãe, que tem maioria branca, eu tenho bastante conhecimento, até de um tatatataravô. Mas a família do meu pai, em que a maioria das pessoas são negras, o conhecimento é bem raso. Conheço até o meu tataravô, mas ninguém sabe explicar a origem da família”.

O documentário “Raízes”, lançado em 2017, resgata através da vivência de Kelton, jovem negro e periférico, toda essa história de apagamento das ancestralidades negras. O documentário traz uma busca do jovem por sua ancestralidade.

“A galera que tem grana tem até quadro, do ser branco rico, e aí são vários quadros, trazendo historicamente e até cronometrado por tempo e gerações quem foi aquele cara, e nos negam isso”, explica Kelton em trecho do documentário.

Cena do documentário Raízes, onde o personagem Kelton faz uma busca por sua ancestralidade. Imagem: Reprodução

Pudera todos nós sermos Keltons, com a possibilidade de ir atrás de conhecer um pouco mais de nossa real cultura e de onde vem o sangue que corre em nossas veias, mas infelizmente o conhecimento sobre sua ancestralidade ainda é um privilégio de poucos.

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João Paulo Rocha Lopes
Revista Brado

Jornalista formado pela Universidade Federal do Espirito Santo.