RAÇA | Quando um negro faz gol, todo mundo aplaude

Aos negros não era permitida a bola, até que descobriram o que podiam fazer com ela

Luisa Cruz Ribeiro
Revista Brado
5 min readSep 29, 2020

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Neymar Jr. e Álvaro Gonzalez, em partida que o jogador brasileiro afirma ter sofrido racismo. Crédito: Gonzalo Fuentes | Reuters. Disponível em Uol.

A frase que intitula este texto foi dita pelo presidente da Federação Francesa de Futebol, Noël Le Graët, em entrevista ao canal francês RMC, na terça-feira (15/09). Na ocasião, Le Graët foi perguntado sobre o caso de racismo que o jogador brasileiro Neymar afirma ter sofrido no último jogo do Paris Saint-Germain contra o Olympique de Marseille.

Em determinado momento da partida, o jogador Álvaro Gonzalez teria chamado Neymar de “mono hijo de p*” (“macaco filho da p*”). Neymar, então, teria reagido com um tapa na nuca de Álvaro. Após alerta do VAR, o juiz decidiu pela expulsão do jogador.

Na Copa de 2018, a vítima foi o jogador francês Mbappé. O youtuber Julio Cocielo fez um tweet em que dizia “Mbappé conseguiria fazer uns arrastão top na praia ein”. O tweet racista gerou revolta na Internet e Cocielo perdeu contratos com patrocinadores como Adidas, Itaú e Submarino. No último dia 12, o Ministério Público de São Paulo ajuizou uma Ação Civil Pública contra o youtuber, que pode ser condenado a pagar mais de R$ 7 milhões por dano social.

Cocielo se explicou dizendo que o tweet apenas se referia à velocidade do jogador. Mesmo que fosse, não justifica uma letra de mais um entre tantos comentários repulsivos que ele já publicou na rede social citada. Além do tweet sobre Mbappé, deixo ainda outros dois exemplos, mas, caso você precise de mais, o Google está cheio de capturas de tela tiradas antes que Cocielo os apagasse do Twitter.

Imagem: Reprodução | Twitter

Dando mais alguns passos para trás na linha do tempo — e na luta contra o racismo -, chegamos ao episódio nefasto da torcida do Grêmio. Em 2014, no jogo Santos x Grêmio pelas oitavas de final da Copa do Brasil, câmeras da ESPN Brasil flagraram torcedores do time tricolor chamando o goleiro Aranha de “macaco” e fazendo gestos que imitam o animal.

Depois dos crimes cometidos por alguns torcedores, o Grêmio foi adequadamente expulso do campeonato. O aprendizado, porém, não veio. Aranha foi tratado como culpado da “injustiça” — entre muitas aspas — que o Grêmio sofreu. Depois de ser chamado de “macaco”, Aranha passou por mais vaias e xingamentos, o que mostrou que grande parte da torcida tricolor era, sim, conivente com o crime cometido. Em entrevista, o ex-presidente do Grêmio Luiz Carlos Silveira Martins ainda afirmou que o goleiro, “ao ouvir um gritinho, fez uma cena teatral”. De fato, Aranha, você estava certo quando disse que a campanha contra o racismo naquele jogo anterior ao Santos x Grêmio “não foi à toa”.

Goleiro Aranha encara torcida do Grêmio em jogo com episódio fatídico de racismo sofrido pelo jogador. No canto esquerdo da imagem pode-se reconhecer a torcedora que claramente chamou o jogador de “macaco” em vídeo da emissora ESPN Brasil. Crédito: Ricardo Rímoli | Agência Lance. Disponível em: Site Terra.

Poderíamos discorrer sobre inúmeros casos de racismo no esporte aqui, mas estes, infelizmente, já ilustram bem o cenário. O xingamento de Álvaro — caso seja comprovado*-, os tweets de Cocielo e os insultos da torcida do Grêmio apenas reforçam esse estereótipo repugnante destinado aos negros: ladrões e animais.

Sim, já faz bastante tempo que os tweets foram feitos e que a torcida do Grêmio agiu sem nenhum escrúpulo; sim, essas pessoas podem ter aprendido com os erros e mudado seus comportamentos, mas isso não altera o fato de que racismo era errado quando o crime foi cometido.

No início do futebol, como no início de qualquer coisa neste mundo colonizado, os negros não eram dignos de entrar em campo como protagonistas. Em 1924, por exemplo, os clubes Flamengo, Fluminense, Botafogo e apoiadores, criaram a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA).

Time conhecido como “Camisas Negras”, de 1923. Ainda hoje, a torcida do time vascaíno exalta em seus cânticos a luta por negros e operários para que fossem aceitos nas ligas e campeonatos da época. Crédito: Divulgação | Arquivo Clube de Regatas Vasco da Gama.

Para que o Vasco integrasse a Associação, foi imposto, entre outros requisitos, que o time dispensasse 12 jogadores sob alegação de que “não apresentavam condições sociais apropriadas para convívio esportivo”. De acordo com o Vasco, todos os jogadores eram negros e operários e o time, em ascensão, havia vencido o campeonato carioca da época, no ano anterior.

Para refletir um pouco mais

Antes da Copa de 2018, nos amistosos com a Colômbia e a Rússia, dos 23 jogadores da seleção francesa, três eram nascidos em outros países e doze são filhos de estrangeiros.

A França, quando a África foi repartida como se fosse uma tarte tatin, tomou posse na colonização de muitos países do norte e de vários outros espalhados pelo continente. Como você já sabe, essa “partilha” gerou inúmeras guerras civis que ainda hoje nos mostram suas consequências. O resultado: imigrantes deixando suas raízes para sobreviver nos países que primeiro geraram as guerras das quais eles precisam fugir.

No texto “Jogadores da seleção francesa representam um país que não os representa”, o jornalista Carlos Massari conta a história do jogador Karim Benzema, que declarou: “quando eu jogo bem, sou francês, quando eu jogo mal, sou um árabe filho da p*”. Resume bem o sentimento do torcedor francês em relação aos seus jogadores de origem estrangeira. Acho que o que quero dizer é que, se pensarmos em cultura e pertencimento, a França sozinha não é o único país campeão da Copa do Mundo de 2018.

De fato, quando um negro faz um gol todo mundo aplaude, mas é para isso que a gente serve: entretenimento. Ser vítima de racismo e expor o agressor está fora dos limites. Afinal, como ouso constranger aquele que me tratou sem nenhuma dignidade? Se todo mundo aplaude, é porque o racismo não existe no futebol (contém ironia).

O passado de Neymar já foi revirado dos pés à cabeça nas últimas semanas, assim como foi o de Aranha. Não sou fã de nenhum dos dois, mas isso não me proíbe de repudiar os ataques racistas que sofreram. Não se pode justificar um crime a partir de condutas passadas da vítima.

*Um adendo: mesmo acreditando na veracidade da denúncia de Neymar, é uma questão de ética jornalística não sentenciar Álvaro antes que a Justiça o faça.

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Luisa Cruz Ribeiro
Revista Brado

Em síntese, nas palavras me encontrei. Colunista na editoria de Raça da Revista Brado.