Raça | “Rapaziada, a pauta é racismo”: A imprensa brasileira é antirracista ou apenas foi pressionada?

Mesmo com inúmeras opções de jornalistas negros na imprensa brasileira, CNN escala jornalista acusado de racismo para debater sobre questões raciais e GloboNews promove debate com uma bancada formada apenas por comentaristas brancos. Entretanto, mudam o cenário após críticas de telespectadores

Karina Lima
Revista Brado
4 min readJun 26, 2020

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Foto: Reprodução/ Sala de Tv
Foto: Reprodução/Sala de Tv

Os protestos contra o racismo nos Estados Unidos, após o assassinato de George Floyd, receberam uma atenção midiática muito pertinente na imprensa brasileira. Em contrapartida, a falta de representatividade negra nas telas das emissoras repercutiu em desaprovação popular. As críticas foram feitas ao canal da CNN, no qual, durante uma transmissão ao vivo, a jornalista Alexandra Loras criticou a emissora por escalar William Waack para cobrir as manifestações, e também ao programa “Em Pauta”, da GloboNews, que promoveu debates sobre os conflitos raciais nos Estados Unidos com uma bancada formada totalmente por comentaristas brancos.

É fato que as forças políticas — dentre elas o Estado — decidem o que deve ser lembrado, qual lembrança deve ser mantida e de que forma. A atmosfera política dominante permite que o povo reconheça as nuances do racismo estrutural, mas impede que haja uma política de intervenção no racismo individual.

Levanto a análise sob a ótica de William Waack, que atualmente é âncora do Jornal da CNN. Após divulgação de um vídeo em que ele faz ofensas racistas a uma pessoa, o jornalista foi demitido da Rede Globo em 2017. O vídeo foi gravado em Washington, capital dos Estados Unidos, durante a cobertura das eleições americanas que levaram Donald Trump ao poder.

Não é mera coincidência o fato de que falta representatividade da classe trabalhadora negra nas grandes mídias, enquanto poucos anos após demissão por caso de racismo, o jornalista acusado não só vira âncora da CNN, como é escolhido para debater sobre o assassinato de George Floyd e o racismo sistêmico. A crítica levantada por uma jornalista durante uma transmissão ao vivo lembrando do episódio foi de suma importância para a defender a tese da mídia como quarto poder:

“Não é só com gotinhas de cotas nas universidades que vamos resolver a questão racial no Brasil. Hoje, a CNN e toda a mídia brasileira têm o poder de convidar acadêmicos negros para conversar sobre essa temática. Quando vejo William Waack, que foi mandado embora por um episódio de racismo, e, hoje, debate tanto tempo sobre a questão, eu acho que deveríamos também convidar negros, no lugar de fala deles, para debater sobre essas questões”, declarou Alexandra.

A emissora não se pronunciou oficialmente sobre as reclamações da falta de representatividade negra na cobertura dos protestos. Entretanto, no dia seguinte, o jornalista Diego Sarza — que é preto — ganhou mais protagonismo no canal. Neste dia, o “Expresso CNN” contou com alguns convidados, dentre eles Thiago Amparo, advogado e professor de Direito da Faculdade Getúlio Vargas, e o ex-goleiro Aranha — ambos negros.

Após entender as críticas, comentaristas negros e o jornalista Diego Sarza assumem mais protagonismo nas telas do programa “Expresso CNN”. (Foto: Reprodução/CNN)

O assunto repercutiu na Internet durante toda a semana e, paralelo à CNN, gerou polêmica também a programa da GloboNews. Após receber críticas nas redes sociais por promover um debate sobre os conflitos raciais nos Estados Unidos com uma bancada formada apenas por comentaristas brancos, o canal, sob o comando de Heraldo Pereira, escalou no programa “Em Pauta”, no dia seguinte, cinco jornalistas negras para debater sobre a questão: Maju Coutinho, Flavia Oliveira, Zileide Silva, Aline Midlej e Lilian Ribeiro.

Sob o comando de Heraldo Pereira, o programa “Em pauta”, da GloboNews, escala apenas jornalistas negras para debater racismo. (Foto: Reprodução/Globo News)

Antes de passar o programa para Heraldo, o jornalista Marcelo Cosme leu um editorial sobre o assunto. Ao reconhecer o erro da emissora, disse: “Os jornalistas que dividiram comigo a cobertura ontem, todos experientes e de alto nível profissional, eram todos brancos. Eu estaria mentindo se dissesse que foi um acidente”. Ele mostrou no ar o “meme” do Twitter com a imagem da bancada que esteve no programa no dia anterior com a legenda irônica: “Rapaziada… a pauta é racismo”.

Cosme foi honesto ao dizer que não foi um acidente. Ambas emissoras são reflexos da ausência e do silenciamento de profissionais negros nos oligopólios midiáticos, mesmo que o país tenha um histórico considerável de envolvimento em pautas progressistas.

É urgente que a sociedade faça uma autocrítica sobretudo às variantes da democracia, e, dentre elas, a relação no capital-trabalho. O maior percentual de negros desempregados está concentrado nas regiões Nordeste e Sudeste do país, onde há mais pretos e pardos de acordo com o IBGE. Cerca de 63% dos desempregados no Brasil são negros, e mesmo quando inseridos no mercado de trabalho, criam-se novas formas de limitá-los.

A representatividade negra na mídia e em espaços que sempre foram e ainda são negados a essa população é muito importante. Os exemplos relatados mostram que a sociedade está começando a entender o quão problemático é excluir os negros do debate racial. Entretanto, só ocupar esses espaços não rompe com o racismo. A comunidade negra tem bagagem intelectual para debater sobre política, economia, justiça e todas as narrativas que promovem um modelo de sociedade. Excluir o intelecto ou limitá-lo aos conflitos raciais é não entender que o racismo é sistêmico e está ligado à todas as outras estruturas.

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Karina Lima
Revista Brado

Estudante de Jornalismo (UFES) | Pesquisadora | Colunista da Revista Brado