Saída dos EUA do Afeganistão pode resultar em nova onda de terrorismo

Anunciada por Biden no último dia 13, retirada de tropas deve ser vista com cautela e seus resultados dependem de como se darão as negociações

João Pedro Sabino Frizzera
Revista Brado
6 min readApr 23, 2021

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No dia 11 de setembro de 2001, o mundo inteiro parou ao assistir em choque um dos ataques mais ousados da história moderna aos edifícios do World Trade Center, em Nova York, e ao edifício do Pentágono, em Washington D.C. Como a história nos conta, esse evento tornou-se um dos mais importantes na política internacional contemporânea, pois suas consequências ainda podem ser sentidas profundamente em variados campos, como economia, política, sociologia e diplomacia.

Bombeiros hasteiam a bandeira americana em meio aos escombros do World Trade Center em Nova York, 11 de setembro de 2001. Foto: Thomas E. Franklin

Já em outubro de 2001, os EUA invadiram o Afeganistão em concordância com a recém-formada política da “Guerra Mundial ao Terror”. O objetivo dessa invasão era derrubar o brutal regime do Talibã, que deu suporte e asilo a membros do grupo Al-Qaeda, incluindo seu líder Osama bin Laden, responsáveis pelos ataques em 11/09.

Quase 20 anos depois, os EUA e alguns membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) ainda permanecem no país, mas isso pode estar prestes a mudar. No último dia 13, Joseph Biden, o novo presidente dos EUA, prometeu a retirada das forças americanas estacionadas no país, dessa vez até a data simbólica de 11 de setembro de 2021. No entanto, a decisão entre permanecer ou sair do país é uma questão bastante complexa e sem reposta fácil, levando em consideração a percepção de ameaças locais, custos financeiros e políticos, o desgaste nas relações com a população local e os possíveis efeitos práticos para a segurança regional.

Quando Biden era vice-presidente, durante a administração Obama, defendera a saída das forças dos EUA e da OTAN o quanto antes, deixando para trás somente uma força-tarefa contra-terrorista para auxiliar o governo nacional afegão. Obama, no entanto, acreditava que o fortalecimento do Talibã em bolsões no sul do país indicava seu ressurgimento, portanto não era o momento para retirar-se e optou então pela permanência no país.

Hoje, Biden passa pelo mesmo dilema: o Talibã se encontra tão forte quanto estava em 2001, com mais forças na região sul do país. O Estado Afegão, tão apoiado pelos EUA e seus aliados, é um Estado vacilante, instável e só exerce controle, ainda que frágil, sobre a capital Cabul e parte do centro do país, enquanto o resto do país é controlado, em diferentes graus, pelo Talibã. A coalização internacional, por outro lado, é bastante reduzida e conta com no máximo 10 mil membros, quando em seu auge possuía mais de 100 mil.

Obviamente, Biden sabe dos riscos existentes com essa medida, mas ele, como a imensa maioria dos norte-americanos, acredita que que as perdas de sair do país são bem menores do que permanecer, tendo em vista que se trata de uma guerra sem fim e sem possibilidade de se ganhar. Em contrapartida, alguns dos generais estadunidenses o alertaram que a retirada das forças na região criaria um vácuo de poder a ser preenchido facilmente pelos grupos sectários, especialmente o próprio Talibã.

Cena após ataque de carro-bomba em Cabul, capital afegã. Cada vez mais o Talibã dá sinais de força ao fazer atos de terror dentro de um dos últimos redutos do Governo Nacional Afegão. Foto: AP Photo/R. Gul

Nesse momento de impasse, em que várias opções estão na mesa de discussões, é natural tentar buscar na história precedentes para utilizar como um exemplo. Nesse caso particular, é possível fazer comparações entre o conflito atual no Afeganistão com o conflito norte-americano no Vietnã: Apesar das circunstâncias políticas serem vastamente diferentes, ambos possuem grandes similaridades na forma como ocorreram. Em suma, mesmo com a evidente superioridade bélica dos EUA e sua coalização, a tarefa de eliminar as resistências locais tornou-se impossível.

Mais do que as similaridades da natureza da guerra, entretanto, ambos os casos também parecem caminhar para o mesmo desfecho. Em 1975, pouco mais de 2 anos após os EUA retirarem suas forças do Vietnã do Sul, como ditavam os Acordos de Paz de Paris, o Vietnã do Norte invadiu novamente o Sul. Sem o suporte militar dos EUA, as forças do Sul não resistiram ao avanço dos comunistas, que conseguiram reunificar o país e, assim, pôr fim à longa Guerra do Vietnã, que se tornou uma república socialista.

Agora, em 2021, muitos temem que o mesmo destino possa recair sobre o Afeganistão, já que dificilmente o governo afegão conseguirá manter a ordem por muito tempo sozinho. Se isso acontecer, diferentemente do conflito vietnamita, o que está em jogo é também o futuro da jovem e frágil democracia afegã, dos direitos humanos para milhões de pessoas, e o retorno à tirania. Ou seja, a saída norte-americana do país, embora desejada por todos, poderá causar mais derramamento de sangue, ao invés de menos.

Tropas americanas embarcando em helicóptero em 15 de janeiro de 2019. Foto: Reuters

Considerando tudo isso, existe uma saída que possa agradar a esses dois lados? O que poderia ser feito de modo a reduzir a participação estadunidense no Afeganistão sem condenar ao fim o regime democrático local e sem causar o ressurgimento do Talibã? Novamente, a história nos concede um precedente. Embora não tão lembrado hoje em dia, o Afeganistão também foi invadido pela União Soviética no passado, na virada de ano de 1979–1980, e assim como os EUA, os soviéticos logo se viram em uma longa e complicada ocupação no país que deveria ter durado pouco tempo, mas que se estendeu até 1989. Ao longo dos anos eles também tentaram reestruturar o governo afegão para lutar por si contra os insurgentes, mas não tiveram sucesso. Depois que se retiraram do país, entretanto, os mesmos continuaram a financiar o Estado Afegão a lutar contra os insurgentes. Somente quando esta fonte de dinheiro secou o Estado Afegão enfim colapsou, dando início ao brutal regime do Talibã.

Assim sendo, muitos especialistas defendem que o mesmo pode ser feito agora pelos americanos. Alguns argumentam até que o fim da ocupação pode incentivar novas negociações entre o governo afegão e o Talibã, de modo a pacificar o país pela diplomacia e não pela força. Isso, no entanto, é improvável, já que os terroristas dificilmente aceitariam se subjugar ao governo afegão e sua Constituição que, entre outras coisas, oferece legal proteção às mulheres, o que é inaceitável para sua ideologia. O fim da participação americana na guerra também deu ímpeto e confiança aos membros mais sectários, que agora declaram “Vitória sobre a América”.

“Conheça a si mesmo, conheça seu inimigo, mas acima de tudo, conheça o terreno”. A charge demonstra a dificuldade imposta pelo terreno afegão aos americanos e a vantagem que os afegãos tiveram ao longo da história em defender o próprio território. Observe as rochas acima com o nome dos invasores passados que foram derrotados pelos afegãos da mesma maneira que os americanos a partir de 2001. Charge: R.J. Matson

Em síntese, a margem para a diplomacia ainda é baixa, mas dependerá de como a retirada final ocorrerá de fato. Desde a invasão, naquele longínquo outubro de 2001, mais de 64 mil vidas civis e militares foram perdidas em meio aos combates, que custaram quase 1 trilhão de dólares, desde a manutenção dos militares até a reconstrução do Afeganistão. Ainda assim, não foi criada sequer uma base para um futuro mais próspero e pacífico. Isso mostra quão fracassada a operação foi desde o princípio e agora, sem o devido planejamento a longo prazo, a retirada pode gerar um legado ainda mais negativo e duradouro para o futuro do Afeganistão e para toda a região, já tão assolada pela guerra.

Concluo com um questionamento: vale mesmo à pena retirar as tropas sabendo da possibilidade de um dia ter que enviá-las novamente para o mesmo lugar?

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João Pedro Sabino Frizzera
Revista Brado

Estudante de Relações Internacionais pela Universidade Vila Velha | Colunista de Política da Revista Brado.