Se manter imparcial diante da tirania é escolher o lado do tirano

Quando a democracia corre perigo, é dever da imprensa — e de todos –defendê-la abertamente

João Vitor Castro
Revista Brado
7 min readJun 25, 2021

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Foto: Alan Santos/PR (04.02.2021)

No último sábado (19), enquanto protestos varriam o Brasil pelo impeachment do presidente, o país atingiu a triste marca de 500 mil mortos por Covid-19. Triste não, perdão, a revoltante, repugnante, repulsiva, hedionda marca de meio milhão de brasileiros violados, sufocados e assassinados por essa doença para a qual já existe vacina. Vacina essa que foi perturbadoramente sabotada pelo governo brasileiro, que ignorou 53 e-mails da Pfizer e se negou a comprar o imunizante, do qual 70 milhões de doses chegariam ainda em dezembro, pela metade do preço.

Vídeo de março da BBC Brasil compila falas do presidente ao longo das 300 mil mortes da pandemia até aquele momento.

Ainda no sábado, o Jornal Nacional foi encerrado com um editorial que criticou a postura negacionista e inconsequente adotada pelo governo federal, com a recusa de vacinas, o incentivo a aglomerações, o desincentivo ao uso de máscaras e a compra de medicamentos comprovadamente ineficazes para o tratamento contra a Covid-19 — compra que passa a ser investigada pela CPI da pandemia no Senado por suspeitas de favorecimento ilegal de empresas farmacêuticas. Ao final do editorial, na voz do âncora e editor-chefe William Bonner, o jornal afirmou:

“Nós do jornalismo da Globo estamos há um ano e meio, com base na ciência, cumprindo o nosso dever de informar, sem meias palavras. […] Nós seguimos em frente, sem concessões, e seguiremos em frente, sem concessões, porque tudo tem vários ângulos, e todos devem ser sempre acolhidos para a discussão. Mas há exceções, quando estão em perigo coisas tão importantes como o direito à saúde, por exemplo, ou o direito de viver numa democracia. Em casos assim, não há dois lados”.

Na segunda-feira seguinte (21), ao ser questionado pela repórter Laurene Santos, da afiliada da Globo em Guaratinguetá, sobre sua chegada na cidade sem máscara, o presidente Jair Bolsonaro deu mais um de seus ‘chiliques’ cotidianos: “Eu chego como eu quiser onde eu quiser, eu cuido da minha vida”. Em seguida, retirou a máscara e disparou seus asquerosos e autoritários escarros contra a jornalista, a mandando, inclusive, calar a boca.

O espetáculo dantesco levou a manifestações de diversas personalidades e entidades, tanto do meio político quanto do meio jornalístico. A Globo e a TV Vanguarda, onde Laurene Santos trabalha, emitiram uma nota na qual afirmam: “Não será com gritos nem intolerância que o presidente impedirá ou inibirá o trabalho da imprensa no Brasil. Esta, ao contrário dele, seguirá cumprindo o seu papel com serenidade”.

A mais dura manifestação, porém, foi da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que chegou a pedir a renúncia do presidente em sua nota de repúdio.

“[…] Que o presidente nunca apreciou uma imprensa livre e crítica, é mais do que sabido. Mas, a cada dia, ele vai subindo o tom perigosamente. Pouco falta para que agrida fisicamente algum jornalista. […]

Diante desse quadro, com a autoridade de seus 113 anos de luta pela democracia, a ABI reitera sua posição a favor do impeachment do presidente. E reafirma que, decididamente, ele não tem condições de governar o Brasil.

Outra solução — até melhor, porque mais rápida — seria que ele se retirasse voluntariamente.

Então, renuncie, presidente!” (Nota da ABI assinada por Paulo Jeronimo, seu presidente).

Apesar da clara ameaça que os arroubos despóticos de Jair — ou seria Jail? — Bolsonaro representam, é bom que eles empurrem cada vez mais veículos e jornalistas, como vêm empurrando, para longe da muralha da imparcialidade que forma a áurea — mais externa que interna — do jornalismo profissional.

O debate sobre a imparcialidade não tem conclusão e, ao que tudo indica, permanecerá nesse cabo de guerra para sempre — e que bom que seja assim. Muitos estudiosos da profissão defendem que a imparcialidade, além de humanamente impossível, é uma plataforma sobre a qual a maior parte dos veículos escolheu subir para que assim possa julgar a realidade com ares de objetividade que tornem sua narrativa inquestionável. Faz sentido. De outro lado, muitos outros estudiosos acreditam que a imparcialidade plena é sim impraticável, mas que ela deve ser a bússola dos bons jornalistas, que a devem buscar a todo custo, mesmo sabendo que jamais a atingirão. Também faz sentido.

O que não faz sentido é considerar que essa imparcialidade plena — ou a sua busca — seja também perpétua. O motivo é muito simples: há momentos em que ser imparcial, considerar todos os lados como equivalentes e todas as vozes como dignas da palavra, pode colocar a própria atividade do jornalismo em risco. Isso faz parte da natureza dessa atividade: o jornalismo nasce da democracia como uma arma de defesa da democracia.

A origem do jornalismo tal como conhecemos hoje se dá nas revoluções liberais iniciadas no século XVIII na Europa e nos Estados Unidos, quando a liberdade de imprensa se tornou um dos pilares de sustentação do novo modelo de sociedade. Foto: Evandro Teixeira (Passeata dos Cem Mil)

Jamais existiu e jamais existirá em local algum da Terra — esférica — imprensa livre sem democracia; da mesma forma que jamais existiu e jamais existirá democracia sem imprensa livre. Esses valores, que são valores antes de serem sistemas concretos, caminham lado a lado, e é impossível dissociá-los. Ora, sem liberdade para que a imprensa desnude o rei, a sociedade perde os meios para garantir a democracia; e sem a garantia da democracia, a imprensa não tem liberdade ou segurança para mostrar que o rei está nu.

A imprensa é uma das instituições democráticas cruciais de qualquer sociedade do mundo livre. Ela é, portanto, uma instituição política e social. Sendo assim, é dever do jornalismo sério, ético e profissional defender aberta e ativamente o estado democrático de direito. Quem diz isso não sou eu, mas o Código de Ética que norteia nossa profissão:

Art. 6º É dever do jornalista:

I — opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos;

III — lutar pela liberdade de pensamento e de expressão;

IV — defender o livre exercício da profissão;

VII — combater e denunciar todas as formas de corrupção, em especial quando exercidas com o objetivo de controlar a informação;

X — defender os princípios constitucionais e legais, base do estado democrático de direito.

Não existe neutralidade onde a democracia está em jogo — e a democracia está em jogo no Brasil. Quando um presidente tenta, dia após dia, corroer as instituições democráticas e impor ao Brasil o arbítrio, supor que a imprensa se mantenha neutra é desconhecer a natureza de sua atividade. Não espere que o jornalismo, de qualquer parte do planeta, seja imparcial diante da Venezuela de Nicolás Maduro, da Hungria de Viktor Orbán, da China de Xi Jinping, da Rússia de Vladimir Putin, das Filipinas de Rodrigo Duterte. Não espere que o jornalismo seja imparcial diante do Brasil de Jair Bolsonaro.

Onde quer que a democracia seja ameaçada, que uma página de uma Constituição seja arbitrariamente rasgada, o jornalismo — o bom jornalismo — estará essencialmente na oposição. Essa não é uma escolha; é um compromisso, é um dever.

O inquilino do Palácio da Alvorada — e que permaneça ali abrigado pelo menor tempo possível — trabalha incansavelmente por um país onde nenhum jornal informe com clareza o número de mortos numa pandemia; em que nenhuma jornalista exija explicações. Enquanto isso, é dever da imprensa trabalhar incansavelmente — como tem, com todas as dificuldades, trabalhado — por um país em que presidentes sigam respondendo, de preferência com o mínimo de respeito e educação que se espera de um chefe de Estado.

Foto: Isac Nóbrega/PR (Brasília — DF, 31/03/2021)

A imprensa vencerá. Bolsonaro deve satisfações e vai dar. Vai ter que aguentar os microfones e as câmeras apontadas para o seu nariz — que se boneco de madeira fosse, já atravessaria o Atlântico —, ou vai ter que pedir pra sair. Cala a boca, presidente, já morreu. No dia 15 de março de 1985, mais especificamente, quando seus heróis deixaram o poder pela porta dos fundos, tal qual o senhor deixará muito em breve. Um presidente de 4 ou 8 anos não será capaz de emudecer um jornalismo centenário.

Por fim, permitam-me discordar em um só ponto do brilhante editorial do Jornal Nacional do último sábado: quando a democracia está em risco, existem sim dois lados. Um lado é o da legalidade, da civilidade, da liberdade, da normalidade; o outro é o do caos, do golpe, da barbárie e do crime. Não existe meio-termo.

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João Vitor Castro
Revista Brado

Jornalista, editor-chefe da Revista Brado e autor de “Refluxo” (Pedregulho, 2023).