Todas as Faces de Ciro Gomes

Contradições pessoais e partidárias explicam porque a candidatura do pedetista não conseguiu se viabilizar.

Otávio Gomes
Revista Brado
8 min readSep 30, 2022

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Rovena Rosa/Agência Brasil

Desde as fatídicas manifestações contrárias ao aumento da tarifa de ônibus pelo governo de São Paulo em março de 2013, gestado numa tentativa frustrada de reeditar o movimento Occupy Wall Street em terras brasileiras por parte de alguns setores mais radicalizados da esquerda, a política do país vem se transformando de tal modo que é cômico, senão trágico, a funcionalidade cadente das categorias utilizadas pela nossa classe jornalística para identificar corretamente os fenômenos cujos tons compõem a nova paleta de cores do quadro eleitoral do presente pleito. Em contraste, a dita nova-direita nacional, emergente dos anseios reprimidos de uma grande parcela da população, cuja primeira punção emocional encontrou nos protestos de nove anos atrás uma representação legítima, por vezes projeta no inimigo político da ocasião a sombra de seu adversário perene: o lulopetismo.

A título de exemplo, quando do pleito presidencial de 2018, a impressão geral do lado de cá a respeito da candidatura de Ciro Gomes era a de mais um peão na linha auxiliar petista. Afinal, a escolha óbvia entre todas à Presidência da República sob o ponto de vista de um lulista ou simpatizante desiludido — o que se via aos montes — era o pedetista. É claro, tal conclusão se dava por um esforço imaginativo a partir de algumas coincidências entre as linguagens de discurso ideológico utilizadas por Ciro e Haddad, e se comprovava pela pouca discussão sincera e amigável, em virtude do clima hostil reinante na época — e ainda hoje. Como se viu um pouco mais tarde, a tendência eleitoral foi mais ou menos essa, e o clima passivo-agressivo entre Ciro e o Partido dos Trabalhadores (PT), que se estendia desde antes de 2018 e havia perdurado até depois das eleições, parecia confirmar a tese de que o Partido Democrático Trabalhista (PDT) não passava de mais uma cabeça da hidra petista, dividindo espaço com Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Partido Popular Socialista (PPS), agora Cidadania, e tutti quanti.

Ora, é natural que a direita trocasse as bolas em sua meninice na tentativa de se situar num campo cheio de velhas raposas. Todos que tenham algum conhecimento de como funcionam reuniões de sindicatos, principalmente daqueles ligados ao funcionalismo público, sabem da existência do dispositivo político-institucional que reúne professores (em especial os de universidades públicas), militância paga, centrais sindicais e partidos políticos e estrutura toda a ação política desses últimos numa determinada região. Em especial, as centrais sindicais ligadas ao PT fazem um hercúleo trabalho de reunir representantes dos organismos supracitados em assembléias extraordinárias e, por assim dizer, resolver as diferenças, lavar a roupa suja em casa e então determinar um plano de ação seguido de uma divisão de tarefas diante de um problema político momentâneo. Ainda mais no Brasil, onde o nosso federalismo de fachada faz com que as assembléias e câmaras subnacionais sejam nada mais que feudos dos seus respectivos executivos, é compreensível que surja uma forma de barrar os interesses desses quando se se encontram com os dos operadores da máquina pública. Essa é uma forma clássica de organização política que a esquerda nacional desenvolveu e aprimorou desde antes da ditadura militar e exemplifica a forma com que o movimento esquerdista se aglutina e se despersonaliza, distingue-se e especializa-se, dificultando a análise por quem está de fora. É por isso que o Partido da Causa Operária (PCO) e o PSOL, por exemplo, mesmo criticando duramente o PT sob diversos aspectos nesses últimos quatro anos (e, no caso do PSOL, desde muito antes desse último ciclo eleitoral), agora apoiam a candidatura do ex-presidente Lula.

Já o PDT, por outro lado, descende de outra tradição política e por isso mesmo não se enquadra dentro do raio de ação petista. O PT e seus satélites surgiram direta ou indiretamente do antigo Partido Comunista Brasileiro, o Partidão, e, portanto, podem ser classificados como professantes de um socialismo internacionalista, com características idiossincráticas que variam de partido a partido e nos seus quadros internos. Por sua vez, o partido de Ciro propõe um socialismo nacionalista, algo mais aproximado da “esquerda clássica” ou socialismo utópico. Digo “mais aproximado” pois, segundo o próprio Leonel Brizola, fundador e líder histórico do partido, em discurso na ocasião da convenção nacional do partido em 2002, o PDT representaria um trabalhismo legitimamente brasileiro. Em vez de uma importação dos socialismos teóricos estranhos à experiência nacional, seria a continuidade do projeto nacionalista de Getúlio Vargas, que buscava reunir as ideias de Júlio de Castilhos e Conde de Saint-Simon para o desenvolvimento de um país capitalista e moderno sob o pendor da justiça social.

Brizola foi enfático ao dizer que não se identificava com a esquerda clássica, como se podia imaginar, e, das vezes que prestou solidariedade à esquerda internacionalista (e, aqui, ele inclui marxistas, fabianos, social-democratas e trabalhistas anglo-saxões), foi porque objetivos semelhantes os aproximavam. De certo modo, o “socialismo moreno”, no dizer de Darcy Ribeiro, não se trata de um laborism que chegou aos trópicos e se bronzeou. O projeto de Brizola visava a reconstrução de um socialismo legitimamente brasileiro, fruto das três raças, de melanina naturalmente enriquecida. Um querido professor meu disse numa ocasião que considerava Getúlio um político “getulista”, uma espécie de Perón brasileiro. Brizola, no entanto, dizia rejeitar os fundamentos da esquerda e da direita — “nem Nova Iorque, nem Moscou” -, pois o trabalhismo brasileiro, em sua opinião, teria se centrado na realidade do país e tratado dos problemas contingentes a ela sem se apegar a modelos teóricos convencionais:

"Todas aquelas idéias, teorias, experiências que surgiram na Europa nada nos serviu de modelo. Não, nada temos do Trabalhismo Inglês, nada foi transplantado para o Brasil e muito menos para o Trabalhismo Brasileiro, o nosso trabalhismo é autóctone, ele é crioulo, é autenticamente brasileiro."

Ciro Gomes é tido por brizolista — portanto, por extensão analógica, um getulista. De fato, no seu livro “Projeto Nacional: O Dever da Esperança” (Leya, 2020), Ciro cita o ex-presidente e ditador gaúcho como a sua magna inspiração política. Porém, os anais da vida política do paulista-cearense mostram que a formação ideológica de Ciro se moldou de maneira muita mais heterogênea do que se poderia pensar e, aos poucos, a confusão de sua imagem com o PT torna-se cada vez mais compreensível.

É possível identificar em Ciro uma tendência de se aproximar da esquerda internacionalista ao longo de sua carreira política. Enquanto graduando em Direito na Universidade Federal do Ceará, foi militante do grupo Habeas Corpus, ligado à esquerda católica, e candidatou-se à vice-presidência da sucursal da União Nacional dos Estudantes na Universidade por uma chapa social-democrata, em 1979. Aliás, a relação entre Ciro e o socialismo democrático perpassa toda a sua carreira política. Nos anos 1980, filiou-se ao Partido Democrático Social (PDS) — aquele do Paulo Maluf, um dos principais adversários de Brizola, e herdeiro da Arena, o partido da ditadura — para candidatar-se à Assembleia do estado do Ceará, da qual foi presidente. Ao aproximar-se de Tasso Jereissati, ainda nessa década, filiou-se ao Partido do Movimento Democrático do Brasil (PMDB), mas transferiu-se à nova legenda do padrinho político logo depois, o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), pelo qual foi prefeito de Fortaleza e Governador de Ceará.

Provavelmente, foi em meados da década de 1990, quando já tinha deixado o Ministério da Fazenda durante a transição do governo Itamar para o de Fernando Henrique Cardoso, que Ciro participou das reuniões do fórum de discussão marxista-leninista Foro de São Paulo, que possuía relações íntimas com Lula e o PT na época, conforme reportagens do jornal Folha de São Paulo. Apesar de ter negado que seria um dos fundadores do Foro ao ser confrontado pelo candidato à Presidência em 2018, Cabo Daciolo, no que foi certamente um dos momentos mais cômicos das eleições do ano, como bem se pode ver neste vídeo datado de 2017, Ciro reconhece a existência do Foro e, neste trecho do programa de televisão “Provocações”, apresentado pelo dramaturgo Antônio Abujamra, o ex-ministro da Casa Civil do governo Lula, Zé Dirceu, cita que Ciro Gomes participava ativamente das reuniões do fórum.

A aproximação de Ciro com o PDT se deu pela articulação de Roberto Mangabeira Unger, ideólogo do partido, mas a filiação propriamente dita só ocorreria em 2015. Antes disso, Ciro candidatou-se pela primeira vez à Presidência em 2002 pelo PPS — que surgiu de uma cisão interna do Partidão -, numa coligação com PDT e PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) articulada por Brizola, que buscava a formação de uma frente ampla de esquerda pelo nome de Ciro junto do PT. Mas, o partido preferiu lançar a candidatura de Lula, que acabou eleito. A Frente Trabalhista, nome com o qual a coligação de Brizola foi apelidada, apoiou o petista no segundo turno contra o nome do PSDB, José Serra, e passou a integrar a base do governo. No primeiro mandato de Lula, Ciro ocupou o Ministério da Integração Nacional, onde ficou até 2007. Desde então, Ciro manteve uma relação de choques e afagos com o PT, até os eventos mais recentes, quando uma ruptura definitiva parece se desenhar.

É evidente a situação de saia justa na qual Ciro se enredou. A estratégia empreendida pelo pedetista nestas eleições visa a comunicação com um eleitorado que não é historicamente o seu. Conforme mencionado, grande parte dos quase 13 milhões de votos que ele conquistou na eleição passada vieram de uma massa de público jovem pertencente à classe média alta, politicamente engajada e identificada com a esquerda. No entanto, a campanha de Ciro agora visa angariar os votos perdidos por Bolsonaro ao longo dos últimos quatro anos, o que incorre na necessidade da conquista da confiança de um grupo composto majoritariamente por pessoas com mais de 30 anos, de núcleo familiar sólido e que, por isso, sofreu com a perda de renda causada pelo recente recrudescimento da inflação.

Esse público tende a pender o voto segundo a realidade econômica do momento; enquanto aquele outro vota de acordo com valores e princípios próprios de suas ideologias políticas. A conta não fecha. Para ter alguma chance de figurar no segundo turno, Ciro precisaria mudar radicalmente o seu eleitorado cativo, o que necessitaria de um período maior do que um ciclo eleitoral. E, para aqueles que em hipótese considerariam o voto no pedetista para evitar um segundo turno entre Lula e Bolsonaro, algumas inadequações entre o discurso ideológico atual de Ciro, que converge a sua clássica retórica nacional-desenvolvimentista com críticas ao PT, direcionado mais ao centro do espectro político, portanto, e a sua antiga relação com o partido. Como convencer moristas e anti-petistas em geral, por exemplo, arrependidos ou desiludidos com o atual governo, diante de declarações como a de que “receberia Sérgio Moro e sua turma na bala”?

Queira-se ou não, a conjuntura eleitoral parece apontar para mais um segundo turno entre o candidato do PT e Jair Bolsonaro, e tem grande culpa aquele que gastou 10 anos de vida pública aguardando receber a benção de quem, hoje, chama de ladrão. De Hobbes a Carl Schmitt, é perene a ideia de que o soberano não é um funcionário público entre outros: o soberano é uma nação. No caso de uma república, a imagem do líder é totalmente projetiva, isto é, a massa precisa se identificar nele a partir de um conjunto de símbolos reconhecíveis coletivamente, quer seja valores quer seja a garantias de cuidado e estima etc.

Num cenário carente de lideranças políticas, e isso quer dizer a falta de figuras identificáveis, no qual o voto por convicção perde assintoticamente espaço para o voto pragmático, urge uma personalidade capaz de aglutinar a massa descontente, desassistida nas suas paixões e refém de seus medos: esse é o exercício da soberania. Por debaixo da falha de visão prospectiva e tino político, e para além da confusão que a sua persona política evoca, Ciro Gomes parece esconder um descolamento do povo que deseja governar.

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Otávio Gomes
Revista Brado

20 anos. Estudante de Jornalismo (UFES). Colunista de editoria de política da Revista Brado