Tupi or not tupi?

Gabriel do Nascimento Barbosa
Revista Brado
Published in
3 min readSep 10, 2021

“Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português”. (Oswald de Andrade).

Alto Xingu, Mato Grosso. Foto: Christine Boose/Creative Commons

Às vésperas de comemorarmos o centenário da Semana de Arte Moderna, o pequeno texto de Oswald de Andrade dialoga perfeitamente com o contexto de aprovação do Marco Temporal para demarcação de terras indígenas. O poeta paulista, em poucas palavras, ilustra bem a relação de domínio cultural que é inerente às iniciativas colonizadoras.

Para aprofundar ainda mais a temática de embate de representações de mundo, uma anedota de Lévi Strauss sobre o processo de conquista da América conta que, se a grande questão do colonizador europeu era a existência de alma dentro dos corpos dos povos originários, no imaginário ameríndio, tudo o que existe possui uma “substância” formadora comum, só se diferenciando na dimensão corpórea. Logo, ao contrário da questão europeia, era óbvio para os ameríndios que o europeu era um ser em comum, porque tudo que existe é, e a grande questão sobre o estrangeiro era se o europeu teria corpo.

Essa história narra como o ser humano é plural em sua cultura e o quanto o pensamento ocidental é distante de outras formulações sobre a realidade. No caso do Marco Temporal, tema desta coluna, o debate sobre a terra discute a respeito de uma base cronológica para legitimar o direito indígena à posse da terra, ou melhor, à demarcação de reservas.

Como nos apresentam os escritos de Oswald de Andrade e Lévi Strauss, trata-se de um debate entre brancos e para brancos. Não há, nessa discussão sobre o Marco Temporal, uma concepção sobre a terra que vá ao encontro das representações de mundo ameríndias. A ideia de posse, que é discutida, e toda a relação jurídica com a terra não faz parte e é absurda no modo indígena de pensar. Não existe, nas comunidades originárias, a ideia de que a terra pode pertencer a alguém, tampouco que a presença física é argumento que identifique de forma objetiva a relação humana com o território.

A construção de realidade dentro da aldeia é inversa ao que é discutido nos tribunais. Não se trata da aldeia ter propriedade sobre a terra, mas é a aldeia que pertence à terra, como apresenta Eduardo Viveiros de Castro com a construção do paradigma do perspectivismo amazônico. Nelas são produzidas relações extensivas que se prolongam no tempo e que são narrativamente conduzidas, mesmo quando da não presença física, posto que a experiência indígena vai além da concepção corpórea objetiva ocidental.

Discutir se a presença dos indígenas em terras na data de promulgação da constituição legitima ou não o direito de demarcação de acordo com critérios brancos, jurídicos e ocidentais do que significa a ocupação é ignorar todo um esforço, que deveria ser feito pelo Estado, de manutenção das culturas originárias. Vastos territórios são ocupados por narrativas, por uma relação com o sagrado indígena, mesmo que, atualmente ou em 88, não houvessem ocupações físicas desse território. Cabe ao regime democrático, se assim for de fato, permitir-se mutável a ponto de permitir a expressão e o diálogo das mais diversas formas de interpretação de mundo de modo a gerar, se não a conciliação, o debate honesto sobre o que está em jogo, expondo os embates discursivos de representações e suas relações de poder. Não é isso o que estamos presenciando.

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Gabriel do Nascimento Barbosa
Revista Brado

Historiador de formação e produtor cultural na área de literatura. É colaborador da Revista Brado e acha estranho apresentar a si mesmo.