Um Brasil sem sentidos
A crise identitária da esquerda à direita
Há dois modos de determinar e descrever as relações entre as propriedades observadas na Física: pelas grandezas escalares ou vetoriais. Nas escalares, a representação se dá apenas no campo da unidade (exemplos: massa, energia, temperatura).
Já na grandeza vetorial, além de precisar da parte numérica (também conhecida como módulo), ela demanda algo a mais: direção e sentido. Força, deslocamento e aceleração são exemplos dessa grandeza física.
Em síntese, podemos entender que a direção se trata da posição, caminho ou espaço de uma reta e o sentido diz respeito à sua orientação.
Relembrar — a grosso modo — esses conceitos da Física talvez ajude a entender a ausência de rumos que a política brasileira vivencia nas últimas décadas: um hiato de identidades, da esquerda à direita.
O atraso da representatividade no país pode ser apresentado em diversos recortes sociais, mas tomemos como objeto de análise as “correntes” ou os posicionamentos políticos brasileiros.
A direita e a esquerda deveriam ser apenas matrizes diferentes que, cada um em sua atuação, lutassem com os seus ideais em busca de um bem maior, um propósito que atendesse aos anseios da sociedade.
Note: quando digo “apenas” não quero diminuir o valor de suas expressões. Pelo contrário, são atividades demasiadamente importantes na vida e no exercício de cada cidadão.
Se pudéssemos assinalar qualidades simbólicas para cada corrente, poderíamos destacar a liberdade e a ordem (para a direita liberal e conservadora) e a igualdade (para a esquerda). Perceba que todos esses valores são — ou deveriam ser — demandas sociais.
Logo, por que tanto ódio e repulsa um pelo outro e tão pouco trabalho, resultado e síntese de ambos?
Respostas não faltam: um pobre conhecimento sobre os próprios espectros; a má comunicação entre ambos e com seu público; a falta de um planejamento conectado com o mundo do século XXI; e, por fim, mas elementar, a ausência de um ponto de partida em comum.
Tomemos esses tópicos como norteadores para, brevemente, esmiuçarmos.
Quem somos (?)
Pergunta introdutória que qualquer organização/instituição utiliza para apresentar ao seu público o seu perfil, suas características. Porém, no Brasil, parece que os partidos e políticos não têm essa resposta bem definida e o povo, o público, muito menos.
A pobreza é tanta que, hoje, qualquer inclinação política é vista de forma dicotômica. Se você é de esquerda, ou você é um social democrata ou você é um comunista. Já se você for de direita, ou você é um liberal ou um fascista.
De fato, as linhas de pensamento, tanto da esquerda como da direita, e as doutrinas políticas (que são outra coisa) vão muito mais além do que esses nomes tão populares e vagos no “debate público” de hoje.
Na direita, a convivência entre a defesa da liberdade econômica e o controle do corpo de um terceiro é ímpar. Enquanto se advoga com unhas e dentes o livre mercado, direitos individuais como a descriminalização do aborto e até mesmo o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo não são tolerados.
Mas essa coexistência tem um “respaldo político”: são os famigerados “liberais na economia e conservadores nos costumes”.
Já a esquerda, atualmente, se agrega aos movimentos identitários, incorporando-os como se fosse sua própria política de Estado, enquanto se vangloria — até hoje — de um melhor poder de consumo conquistado nos governos petistas.
Todavia, parece não compreender que qualidade de vida não se resume somente a maior poder de compra e que o papel da política de Estado é (sim) atender, mediar e inserir grupos identitários, mas não se tornar o próprio movimento identitário.
A falta de autoconhecimento de ambos posicionamentos — desde as lideranças até os adeptos — se refletem em suas representatividades e em seus modos de comunicação.
Enquanto um lado tem poucos partidos “oficialmente” organizados e declarados de direita, a esquerda tem inúmeros e poucos deles agregam, de fato, nas causas de suas bandeiras e no debate público.
Já o modus operandi da comunicação, tanto emitida como replicada, é mais que um espelho da sociedade atual, é bélica. Desinformação dos dois lados. Absurdos, fanatismos e violência em uma ala; rótulos, condenações, lacrações e cancelamentos em outra.
É válido ressaltar que há, sim, pessoas e partidos sérios que trabalham com total consciência e responsabilidade (tanto na direita como na esquerda) e que, dentro de seus valores e missões, propõem um projeto de país com mais igualdades e liberdades.
Um convite ao século XXI
Outro ponto sine qua non no Brasil de hoje é a desconexão dos líderes políticos e partidários em relação ao mundo moderno e às suas novas demandas. Vivemos nos séculos XVIII e XXI ao mesmo tempo.
Enquanto a esquerda canaliza suas energias para discutir pautas e textos — importantes, mas — de autores do século retrasado, os problemas da pauta trabalhista pedem novos conceitos, interpretações e intervenções.
Em um mundo marcado cada vez mais pela uberização da profissão, como os principais defensores da classe trabalhadora podem atuar? Quais os métodos mais efetivos e realistas para que a ala da esquerda contribua com o novo trabalhador?
Militar por uma CLT em serviços autônomos de entregadores de aplicativos é a melhor maneira de lidar com a situação? Será que não há outras exigências mais palpáveis e tangíveis pelas quais lutar?
Já a direita, em pleno 2020, dedica boa parte do seu tempo para alimentar fantasias e devaneios como “comunismo” e “globalismo”. O desvio de foco é tamanho que mais parece um recurso para esconder seu desconhecimento sobre sua principal bandeira.
A ideia de Estado mínimo — em que o governo concentra sua atuação em serviços básicos como educação, saúde e segurança, e o indivíduo alcança seu sucesso através de seus esforços — não funciona com desigualdade de oportunidades. Essa seria a exceção: proporcionar inclusão social.
Em um país carente de necessidades sociais e já acostumado a ser provido pelo estado (incluindo a própria classe empresarial), como aplicar o liberalismo econômico? Não seria essa uma pergunta norteadora?
Um ponto de partida em comum
Por fim, para extrair bons frutos em qualquer conversa, trabalho ou debate, é necessário, primeiramente, saber quais são os pontos consensuais: os fatos.
Quais são as nossas reais dores e demandas sociais, independente de posicionamentos políticos? Onde queremos chegar a médio e longo prazo enquanto nação?
Com um ponto de partida em comum, abre-se a possibilidade de haver teses e antíteses coerentes, consolidadas. Logo, há caminhos para sínteses.
Não importa se os valores e os métodos são diferentes, se as premissas e os propósitos de ambos dialogarem. Mas, para isso, é necessário comunicação.
Até lá, nos contentamos com a política de grandezas escalares, que se preocupa apenas com as unidades de medida (números, massa e poder) enquanto seguimos sem forças vetoriais; sem direções, nem orientações.
Um Brasil sem sentidos.