Um Reino de Incertezas

João Pedro Sabino Frizzera
Revista Brado
Published in
8 min readNov 9, 2022
Britália”, por Pete Reynolds. Na charge, é feito uma paródia da personificação nacional do Reino Unido conhecida como Britannia, dando-lhe o rosto da ex-primeira-ministra Liz Truss e adereços remetentes à Itália. Em 2012, Truss e outros políticos conservadores lançaram um documento exemplificando a situação política e econômica da Itália como um alerta para a sociedade britânica. Ela e outros autores do mesmo documento acabaram por formar um gabinete que, ironicamente, se aproximou em muito de suas críticas direcionadas ao país do Mediterrâneo.

Na última década, observamos como o termo “crise política” foi utilizado para caracterizar o cenário brasileiro, que passa até hoje por profundas dificuldades em encontrar bases sólidas que possam conferir segurança e estabilidade para as instituições do Estado funcionarem e, consequentemente, trazerem bem-estar para a população.

As razões para uma crise política são, como se pode presumir, diversas. É difícil apontar uma ou mais razões exatas que expliquem por que um momento de confusão ou descontentamento do público se iniciou, quem dirá apontar um momento exato onde separam-se um tempo, digamos, “normal” de outro “anormal” — isto é, se você acreditar que crises não são parte de um fenômeno recorrente e natural da vida política.

De qualquer forma, é curioso notar como o mesmo período de crise no Brasil parece coincidir em grande parte com a crise política no distante Reino Unido, só que por razões e em condições completamente diferentes. Diferentemente de nós, os britânicos se situam num país do que se convencionou chamar “primeiro mundo”. Além disso, eles são uma das maiores e mais estáveis economias do planeta e possuem um sistema político baseado em uma monarquia parlamentar.

Apesar dessas inquestionáveis diferenças — e consideráveis qualidades — , as condições atuais do Reino Unido colocam sérias limitações ao futuro do país, levando a dúvidas de se nos próximos anos a Inglaterra será capaz de ser consistente no cenário internacional, já que ela mesma parece hesitar em decidir que tipo de país quer ser, e até quanto ao futuro da mais popular monarquia do mundo. No centro da crise está a complicada situação econômica enfrentada, até o momento sem sucesso, por sucessivos governos dos partidos Trabalhista e Conservador.

O jornal The New Statesman caracterizou a situação do país como um dos muitos reflexos da longa crise do capitalismo global e a revista The Economist atentou para uma série de similaridades negativas com a Itália, chamada não muito tempo atrás de um dos “porcos” da Europa.

Os sinais parecem claros: o país já esgotou suas forças para seguir adiante com seu modelo de comércio, produção e finanças, conforme demonstrado pelo pífio crescimento médio desde a virada do milênio, que não chega em 1% ao ano.

Nos últimos anos, os desafios claramente se amontoaram sobre a esfera da política e começaram a agir fortemente sobre as instituições, e agora ameaçam a capacidade do Estado de manter o padrão de vida inglês. Os recentes governos de Theresa May e Boris Johnson se tornaram essencialmente lutas pela própria sobrevivência, e não foi diferente com o último governo, de Liz Truss.

No último dia 20 tivemos sua já esperada renúncia, que ocorre após meros 45 dias no cargo. Truss foi apontada ao cargo pelo Partido Conservador em meio a uma séria crise política causada por alguns incidentes envolvendo o ex-primeiro-ministro Boris Johnson. Não somente sua ascensão foi conturbada desde o princípio, já que o processo de transição dos gabinetes Johnson-Truss levou meses, mas o tempo também não jogou a seu favor: ela tomou posse somente dois dias antes do falecimento da Rainha Elizabeth II, cujo evento inicia um período de luto oficial de 12 dias, que paralisou sua agenda.

Rainha Elizabeth II recepciona a recém-empossada primeira-ministra Liz Truss em 6 de setembro de 2022, um de seus últimos atos e a última ocasião em que apareceu em público. Foto: Jane Barlow/Pool via AP

Quando o luto é finalmente encerrado, Truss ainda teve de viajar entre os dias 21 e 22 de setembro para Nova York, devido à Assembleia Geral das Nações Unidas, o que atrasou ainda mais as importantes reuniões e negociações que tinham de ser feitas com o Parlamento.

O seu retorno à agenda oficial conseguiu, surpreendentemente, ser ainda mais desastroso: um plano econômico que envolvia cortes de impostos foi anunciado em 23 de setembro e envolvia a perda de 45 bilhões de libras em arrecadação. Isso assusta enormemente o mercado, ao ponto que já no dia 26 a Libra Esterlina caiu para um valor quase equivalente ao dólar (1 libra = 1,033 dólar), uma marca histórica para a moeda.

Já no início de outubro, a situação foge totalmente de seu controle, enquanto sua popularidade atinge históricos 61 pontos negativos de aprovação geral. Ao mesmo tempo, o mercado se assusta ainda mais — e isso tudo enquanto o Partido Trabalhista reaparece na oposição com força revigorada.

Muito daquilo que explica a queda de Liz Truss foram fatores totalmente fora de seu controle, mas outros fatores são simplesmente fruto de uma liderança sem visão e amarrada fortemente em contradições internas — tal foi o caso do incidente da Ministra de Assuntos Internos Suella Braveman, que utilizou seu e-mail pessoal para tratar de assuntos de Estado com um colega congressista, realizando ainda comentários sensíveis sobre a imigração indiana no país, o que teria causado uma indisposição diplomática com a Índia. Como Truss foi inapta em agir em meio à situação, a culpa do incidente recaiu sobre ela, pesando enormemente para que ela considerasse sua renúncia.

Neste momento, um novo primeiro-ministro já foi apontado e aprovado pelo Rei Charles III (ou Carlos III, se preferir). Trata-se de Rishi Sunak, também do Partido Conservador, a primeira pessoa de origem asiática a governar o país (Sunak é descendente de imigrantes africanos de origem indiana) e também o primeiro hindu a comandar o Estado. Sunak chegou a ser cotado para o cargo após a renúncia de Boris Johnson, mas não conseguiu apoio suficiente entre os conservadores e foi deixado de lado na época.

Momento de apresentação do novo Primeiro-Ministro Rishi Sunak em 25 de outubro, em frente à residência oficial dos Primeiros-Ministros, a 10 Downing Street . Foto: Getty Images/The Economist

Seu passado no conceituado banco Goldman Sachs e seu recente histórico como secretário das Finanças e do Exterior em diferentes ocasiões são usados como credenciais de suas capacidades, que certamente serão testadas nos próximos meses. Ele, bem como o Partido Conservador, se veem na missão política de reatar a confiança com o mercado e com o público, evitar os desgastes financeiros e a piora nas condições de vida, reunir as diferenças entre os próprios conservadores e, por fim, promover a estabilidade necessária para o crescimento econômico.

Ao que parece, para ele mesmo, isso é uma missão de monumental dificuldade. Nas palavras de seu discurso de inauguração, o país “está sofrendo uma profunda crise econômica”. É possível que a situação esteja em tal ponto que um novo gabinete conservador só atrase seu inevitável colapso e, no fim, não agrade nem a gregos nem a troianos, como o de Liz Truss. Eleições gerais poderiam até criar um gabinete com mais confiança, mas, no momento certamente, representariam uma derrota dura para os Conservadores.

É importante nesse caso ter ciência de que, enquanto toda a situação interna se deteriora, a diplomacia se encontra imobilizada. Assim como na vida cotidiana das pessoas, crises dentro de casa rapidamente se convertem em problemas nas relações com os demais indivíduos do lado de fora, o que tende a se intensificar à medida em que o Estado inglês tradicionalmente tem uma notável participação nas Relações Internacionais.

A arena internacional, inclusive, se envolve diretamente com a crise doméstica britânica. Um dos fatores centrais para isso foi o controverso processo do Brexit, em que o Reino Unido voluntariamente se retirou da União Europeia, em janeiro de 2020. Ao fim do longo e complexo processo de negociação entre Bruxelas e Londres, novas bases foram erguidas para regulamentar as relações entre as duas partes. Ainda assim, em determinadas situações, as antigas vantagens no mercado europeu foram suspensas, de modo que marcas ou produtos vindos do Reino Unido precisam competir muitas vezes com desvantagem no próprio continente.

Se por um lado o Brexit deu mais liberdade para Londres controlar com quem se relaciona comercialmente e quais os termos comerciais, por outro dificulta o acesso a uma enorme gama de consumidores no continente, colocando o país em uma situação de menor competitividade no mercado europeu. Exportações inglesas vêm sendo comprometidas, o que impacta diretamente empresas locais e afeta milhões de empregos, o que, como consequência, limita a capacidade do Estado de funcionar sem enxugar gastos. Com a piora nas condições econômicas, a crise parece se tornar um círculo: os problemas de dentro causam problemas lá fora e esses voltam a alimentar a crise doméstica, dificultando a busca por uma saída definitiva.

Para piorar, outros problemas no exterior surgiram nos últimos tempos, agora totalmente fora do controle de Londres: a guerra na Ucrânia causou uma alta expressiva nos produtos derivados do petróleo e gás, atingindo especialmente a Europa, e fez com que o mercado russo fosse fechado para empresas britânicas e vice-versa. A cidade de Londres foi afetada especialmente, pois até então era um oásis financeiro para grandes empresas russas — ao ponto de ter sido apelidada por economistas de “Londongrado” — , que agora se veem forçadas a se retirar do país. É bom lembrar também que o país ainda é um dos grandes apoiadores do governo ucraniano, prestando-lhe suporte logístico, militar e político em meio ao conflito com os russos. Tudo isso gera mais e mais custos ao Estado inglês, cuja capacidade de encontrar saídas econômicas diminui a cada dia.

“Tomem os ativos de Londongrado” — Mensagem escrita em um pôster durante um protesto londrino contra a invasão russa na Ucrânia. Foto: Vuk Valcic/Alamy Live News

Enfim, analisando a situação exposta, fica claro como o caso inglês surge como uma forma de pôr em perspectiva algumas coisas para nós do Brasil. Apesar da instabilidade política ter produzido complexos e desanimadores cenários acerca do futuro da sociedade britânica, salta aos olhos a resiliência com a qual instituições de Estado conseguiram manter-se no controle. Nem mesmo com processos amplamente influenciados pela extrema-direita, como o Brexit, ou as ondas de terrorismo na Europa da última década, deram fertilidade suficiente para que demagogos, extremistas e autocratas se infiltrassem na política, nos partidos, nas instituições e, menos ainda, submetessem elas à sua vontade.

A instabilidade política é nociva para a prosperidade e sua continuidade vai comprometer a projeção internacional de um país que historicamente se fez muito presente no mundo, mas ainda assim é interessante ver que a crise não deu precedentes a ondas ultraconservadoras como nos EUA ou no Brasil. Seria isso fruto de seu sistema parlamentar? Ou de sua robustez institucional? Talvez da sua tradição política de respeito às “regras não escritas”? Não sei responder ao certo. Ainda assim, não deixa de ser uma situação que suscita as aspirações de nossa própria sociedade.

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João Pedro Sabino Frizzera
Revista Brado

Estudante de Relações Internacionais pela Universidade Vila Velha | Colunista de Política da Revista Brado.