Você é um cidadão de bem?

Lucas Kalil
Revista Brado
Published in
4 min readMar 17, 2022
Justo Veríssimo, personagem que, apesar do nome, era um deputado corrupto interpretado pelo ilustre Chico Anysio. Foto: Reprodução/TV Globo

Como todo paradigma que é erguido, devemos, enquanto seres pensantes, nos questionar acerca de seu significado e seu papel na sociedade. Como ouvir alguém se autointitular “cidadão de bem” e não se perguntar o que isso significa e, depois, se a pessoa realmente é aquilo que diz ser? Simples: às vezes a ideia já está tão naturalizada em seu íntimo, constituída por seus próprios preconceitos e moralismos, e a verdade parece ser tão absoluta que qualquer questionamento acera da ideia parece ser tolo. Mas, agora, optando pela via racional, o que seria um cidadão de bem? E será que você, leitor, se enquadra na categoria?

Cartaz nazista para campanha de arrecadação de agasalhos para os alemães durante o inverno. Na imagem, a tradicional família ariana, considerada “de bem” por ser o modelo da Alemanha da década de 1930, apesar de apoiar o exterminador regime nazista”. Imagem:invaluable.com

No Brasil, o termo tem ganhado cada vez mais evidência no discurso político e nas conversas dos ‘tiozões’ reacionários. Geralmente, o “cidadão de bem”, segundo o que se percebe quando falam nele, é a mulher ou o homem branco e de classe média, que trabalha, paga suas contas, respeita as leis — ou pelo menos diz respeitá-las — e tem uma família. Vale aqui dizer que esse era o exato perfil do “Cidadão Ideal” do regime nazista. Além disso, como bem relata Hanna Arendt em “Eichmann em Jerusalém”, Adolf Eichmann, um dos principais organizadores do Holocausto, era, por excelência, um exímio respeitador das leis. Por fim, e apenas para exemplificar, “Arbeit Macht Frei” (O Trabalho Liberta) era a frase de “recepção” dos prisioneiros que chegavam ao campo de concentração de Auschwitz.

Assim, há de se convir que trabalho e respeito às leis não te tornam, por si só, um cidadão de bem. Aliás, Cotrim, imortalizado por Machado de Assis como cunhado de Brás Cubas, apesar de ser torturador e traficante de escravos era um modelo da moral brasileira do século XIX, com um caráter — nos termos do escritor — “ferozmente honrado”. Era, por isso mesmo, um cidadão de bem!

Também tem o lado moral da situação. Além de ser branco e pagador de impostos, o cidadão de bem, na concepção popular da coisa, deve ter uma moral correta, incontestável. Ocorre que essa “moral” é a moral cristã — ou a hipocrisia da moral cristã — , na medida em que quase sempre se age contrariamente ao que se prega. Assim, essa “moral” por vezes vem carregada de intolerâncias, que agem justamente na contramão daquilo que deveria ser: o respeito e a paz.

Devo advertir também que ajudar a alguém necessitado ou dar uma palavra amiga não te torna, também, um cidadão de bem. A qualidade de quem faz caridade é ser caridoso, não “de bem”. Um ser com razoável bondade no coração é razoavelmente bom, não de bem. Mas, ora, com tantos empecilhos impostos até agora, chegou à sua conclusão quanto à pergunta que intitula este texto?

Caro leitor, este é o ponto do texto, no qual, se não ficou claro antes, digo explicitamente: não existe “cidadão de bem”, eis que mitologia se difere do que é factível. O termo aqui analisado é pura e simples narrativa criada ao longo da história por pessoas que buscam se manter em suas posições de privilégio perante os que estão abaixo delas. Ter escravos, na sociedade patrimonialista dos séculos XIII ou XIX era, além de legal, importante para a construção da visão de cidadão de bem do proprietário. Hoje, seria condenável em todos os sentidos. Na expressão, há a pretensão de um cidadão universal, que homogeneamente trata todos aqueles que compartilham dos mesmos interesses dominantes, como cidadãos de bem, muito embora possam agir, como Cotrim, de forma cruel e imoral, pelo menos nos bastidores.

Respeitar as leis e pagar impostos é o mínimo que se deve fazer no modelo de sociedade em que escolhemos viver. Fazer isso não te torna mais cidadão ou mais de bem, te faz somente um cidadão em dia com os deveres que te são impostos. A mulher que rouba comida para dar de comer ao filho faminto não é, por ser uma infratora da lei, menos “de bem” que a mulher que alimenta “legitimamente” sua criança.

Se temos tantos cidadãos de bem em nossa sociedade, por que temos tantos famintos, tantos assassinados por conta de sua cor, etnia ou orientação sexual? Se temos uma multidão de cidadãos de bem, não deveríamos ter, proporcionalmente, uma multidão de indignados com a vileza e as injustiças? O que se percebe, ao contrário, é uma multidão de indiferentes com as violências, já tão banalizadas, justamente por termos muitos autointitulados “cidadãos de bem”.

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Lucas Kalil
Revista Brado

Estudante de Direito e de Filosofia, colunista de Justiça da Revista Brado, além de eterno admirador e crítico da vida