5 perguntas para Douglas Germano, que lança hoje “Golpe de Vista”

Paula Carvalho
Revista Bravo!
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5 min readSep 13, 2016
Foto: Divulgação

Douglas Germano é o compositor de diversas músicas do Metá Metá (Obá Iná, Rainha das Cabeças, Vias de Fato, entre elas), Juçara Marçal (Damião), parceiro de Kiko Dinucci (no Duo Moviola) e foi gravado por diversos cantores — dentre eles, Criolo, Dona Inah e Elza Soares, que transformou Maria de Vila Matilde num verdadeiro manifesto feminista nos shows de A Mulher do Fim do Mundo, seu disco mais recente. A música, como Douglas conta abaixo, fala sobre a tragédia que ele vivia em casa quando criança, pois sua mãe era vítima de violência doméstica e chegava a passar semanas sem sair para não mostrar os hematomas aos vizinhos e familiares. Douglas lança nesta terça-feira, 13, o seu terceiro disco, Golpe de Vista (disponível para streaming e download no site http://douglasgermano.com.br/, na seção discos).

Para Kiko Dinucci, com quem divide várias composições (e, diga-se, um jeito parecido de tocar violão), “Douglas é uma espécie de clássico reinventado. Ao ouvirmos os seus sambas, temos a impressão de ouvirmos sambas descobertos em escavações, nos sentimos como um arqueólogo que de repente se depara com clássicos jamais ouvidos”. Abaixo, ele falou à Bravo! sobre a situação do samba hoje, religiões afro, Maria de Vila Matilde, entre outros assuntos.

Qual é a sua formação musical?

Começa tudo na primeira infância. Meu pai era músico de conjuntos de baile. Tínhamos muitos instrumentos de percussão em casa. Eu brincava com carrinhos e com a cuíca, com bola e tamborim. Minha escola, na percussão, foi a bateria da Nenê de Vila Matilde onde desfilei por quase uma década. Comprei um cavaquinho na minha adolescência e fui aprendendo olhando os outros músicos tocarem. Mais tarde estudei violão com Ruy Weber que foi quem ajeitou minha cabeça para as coisas da música. Fui um péssimo aluno, mas um atento ouvinte. Estudei também violoncelo com Andréia Bocchi.

Como você vê o samba hoje? (pergunto porque se vê que muita gente gosta de samba, mas a maior parte dessa cultura tem a ver com músicas antigas, e me parece que mais dificilmente com músicas autorais contemporâneas).

A porta de entrada é essa mesmo. Foi a minha também. Você não escapa de Noel Rosa, Pixinguinha, Cartola, Nelson, Adoniran, Vanzolini e tantos outros que é até uma injustiça citar nomes, pois fica muita gente importantíssima de fora. Mas o que ocorre com o futebol, ocorre também com o samba. Todos são técnicos, todos sabem, todos fazem. E isso não é uma inverdade, mas há uma distância entre quem “pratica” o samba, vamos dizer assim, e entre quem o produz ou o tem como suporte artístico. O samba é um gênero musical magnífico sob todos os aspectos: melódico, rítmico, harmônico e poético. Quem o pensa como forma de expressão, naturalmente vai procurar outras saídas, outras formas dentro de seu espectro. Seja na instrumentação, na harmonia ou mesmo nos temas que ele aborda. Isso, às vezes, pode causar algum estranhamento inicial, mas é natural, pois há uma história gigantesca que nos precede. Há ídolos e obras magníficas que, não estão aí para serem superadas em hipótese alguma, mas para serem reafirmadas com as produções que surgirem ao longo do tempo, se estas conseguirem atingir a originalidade destes grandes autores. Todos construíram uma forma para suas composições. Basta ouvir Baden ou Nelson Cavaquinho. Paulinho da Viola ou João Bosco, Mauro Duarte ou Francis Hime. Todos autores de sambas geniais e todos com seus RGs escancarados já no primeiro acorde. Os que produzem hoje, seguem este exemplo. Parafraseando o Siba, “…as gerações anteriores foram tão originais e criativas que nos obrigam a procurar o mesmo caminho…”.

Você faz muitas crônicas, narrativas do cotidiano, registra momentos que poderiam passar batido. Mas o seu registro não é passivo, sempre se posiciona, tem uma moral. De que lado o seu samba está?

Meu samba está do lado esquerdo. Do lado que inclui, do lado que reclama ou denuncia os abusos de poder em todas as esferas nas quais os presencio. Não é possível fazer arte sem se engajar, sem assumir posição. Se não for assim não sei fazer. E o gênero sempre foi voz que denunciou mazelas e descasos. Não faço nada de novo no que diz respeito a isso.

Música do disco "Orí"

Qual é a sua relação com as religiões afro? Isso se reflete bastante nas suas músicas, não?

Tenho enorme admiração. Sou curioso, leio etc. Acho o Candomblé uma beleza suprema. Uma religião constituída em nosso país, com o panteão formado por Orixás guerreiros cuja mitologia é belíssima e advém de uma trajetória humana com todos os erros e acertos. Musicalmente é esplendoroso. Me apoio muito nessa mitologia para construir metáforas com os personagens nas composições. Gastaria linhas, em uma música, para explicar que “Xogum”, o personagem da música “Guia Cruzada” era um guardião, um sentinela, violento, mas ético, justo, com sentido coletivo em suas ações e reclamações. Resolvi colocando nele uma Guia de Xangô e uma de Ogum, respectivamente o Orixá dono da Justiça e o orixá Guerreiro poderoso.

“Maria de Vila Matilde”, sua música que foi gravada por Elza Soares, virou um sucesso, nos shows ela pede para as mulheres denunciarem agressores pelo número 180. Você diz que ela tem inspiração na sua mãe. Pode contar essa história?

Sim. Passei por essa tragédia dentro de casa. Pode parecer exagero chamar de tragédia, mas não é, não. Eu estava entre os 10 ou 12 anos. É uma situação capaz de destruir qualquer família. Complicar o desenvolvimento dos filhos, comprometer a autoestima, esfacelar a dignidade da mulher etc. É terrível. E é cultural. De todo o terror sofrido à época o que me restou hoje, claramente na memória, é o silêncio. Aquele terror era escondido. Não se falava nada. Minha mãe ficava semanas sem sair de casa até que os hematomas sumissem. Eu e meus irmãos éramos proibidos de dizer qualquer coisa etc… Nós, os filhos, não sabíamos como lidar com aquilo, apenas obedecíamos. E eu era o mais velho entre os 10 ou 12 anos.

Mandei essa música para a Elza, quando fui convidado a compor para o disco, porque ela foi a primeira pessoa que ouvi falar dos problemas que eu enfrentava em casa. Isso foi pela década de 1980 no programa “Tv Mulher”. Uma entrevista de Marília Gabriela com Elza Soares. Aquilo virou a chave para mim. Entendi que estava errado e que deveria denunciar de alguma maneira. Claro que com minha cabecinha dos 12 anos o máximo que consegui foi falar pra vizinha e pra minha avó materna.

Hoje, considerando essa questão do silêncio, torço para que a música sirva para encorajar a denúncia. É muito terrível. E também torço muito para que as instâncias responsáveis por acolher essas denúncias não sejam mais uma esfera de constrangimento para as mulheres vítimas.

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Paula Carvalho
Revista Bravo!

jornalista, doutoranda em sociologia na usp. quase tudo em torno de som 🎛 pra mandar mensagem: paula.cncarvalho@gmail.com